Lembram-se
do bebê Artur? Nunca nessa terra a violência chegou a tal ponto de cega
crueldade e de negação da vida.
Não é
retórica a minha pergunta.
Questiono
se ainda se recordam do bebê que a mãe levava no ventre, quando já se anuncia a
cercania da maternidade?
Como podemos
explicar morte tão cruel, que vai buscar no útero materno, lugar santo que é o
símbolo da vida, a criaturinha que encerra o amor dentro de todas as suas
fases?
Não há
ser humano que não haja se aconchegado nesse recanto abençoado, que é símbolo
da maternidade e da importância da mãe na vida de todos nós.
Pois no Rio de Janeiro, fica demonstrado
que, nem no âmago da vida, e nesse símbolo mais sagrado, do amor e proteção
maternas, o nascituro está livre da maldade e da brutalidade humanas.
Pois, não há em verdade balas perdidas.
Elas são disparadas pelo mal, pela maligna indiferença, pelo desprezo da vida e
das gentes.
A corrupção é o arsenal inesgotável
desse imenso, incessante e ingovernável tiroteio, que traz em si o mais fundo
menosprezo pela vida humana, não importa aonde essa vida se aninhe, se esconda
ou se refugie.
As chamadas balas perdidas não são
filhas do acaso. Elas são criaturas engendradas
pelo mal, entidade que envolve
nas suas negras sombras tudo o que de perverso imaginar-se possa.
Mas como tais projéteis não tem pai, nem
mãe, quem inferniza as pobres vizinhanças com torpes fuzilarias, estúpidas e em
extremo malignas, de nada se acredita responsável, pois pensa nada ter
alvejado, nada ter atingido, e por não ver acredita nada de mal ter feito.
A bala perdida é ainda pior que o assassino
que nos lôbregos caminhos mata à traição a vítima jurada de morte por algum
poderoso de turno.
Pois se sentido existe - por mais
que seja reprovado - em ataque covarde, que o noturno manto recobre, já nesse
outro assassinato, há cega vontade de matar, e ao mesmo tempo torpe menosprezo
quanto à extensão do mal que vai causar.
Se a prática das balas perdidas
exprime enorme, repugnante indiferença, a par de descomunal menosprezo por
nossos semelhantes - a saraivada de projéteis é a assinatura com firma
reconhecida da respectiva indiferença pela existência de quem esteja à volta do
assassino. Por mais anônimo que seja, ele tem a própria culpa inscrita em algum
registro celeste, que há de ser mais eficiente que qualquer burocracia.
A bala perdida, que com ela carrega
o aço assassino, de tudo é capaz. Pois até nascituros mata, e com o peso da
maldade.
Acaso sabem os altos senhores - que
jamais pisarão no chão de bairro chamado Lixão - que no desgoverno a que tanto
colaboram, seja no desvio de verbas, seja nas infindas variedades dos
descaminhos dos fundos públicos, que o respeito da vida alheia - pois da
própria todos o tem - está na base do sagrado fundamento da administração
pública e da existência de comunidades em que o bebê Artur teria a oportunidade
de nascer na boa hora, para a alegria de seus
pais?
A violência, que arrancou da
mãe amorosa o bebê Artur, não é criatura que sai do Nada. Na verdade, esse nada
é o dédalo da violência, que cousa alguma de bom produz. Mas ele, no colo de
dona Corrupção, é abrigado e escondido, para que irrompa amiúde, através das
indigentes paredes de escolas adrede mal-feitas, para poupar mais dinheiro para
as burras da gente do mal. Pois eles não vivem só em favelas, mas também em
quartéis, e em bairros classe A. Aí encontramos a indiferença, senão a cobiça,
que é sede que jamais será saciada.
Adeus, Artur. Tua vida breve
não te deu tempo de escolher crença alguma. Mas quem sabe por seres inocente
poderás ambicionar a glória dos céus e os cânticos do paraíso.
A tua existência, brevíssima
que foi, os fados a carregam de sentido imenso.
Como o bem há de vencer o mal, se em tais lugares, que parecem desertos
de bondade, os grandes não só estão longe, mas dão funda impressão de que essa
existência onde a cega perversidade está de tocaia semelha algo permanente, em
linha genealógica que a perder de vista se estende pelos lixões afora desse
mundo, vasto mundo.
(Fontes: O Globo, Carlos Drummond de Andrade)
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