quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Saudade de meu jovem Pai (II)

             

        A saudade é um sentimento que tem as cores das terras por onde andaram os nossos antepassados lusos. Já no colégio ouvimos que esta palavra é única. Segundo nos contam, ela só existe em português.
        Desde criança, ouvi desconfiado e até mesmo cético - embora só muito mais tarde viesse a saber o que a palavra significa - quanto a esse suposto isolamento extremo da experiência da saudade.
        Será que um vocábulo pode ser assim tão simples e tristonho, e ao  mesmo tempo seja patrimônio linguístico de o que poetas parnasianos chamam a última flor do Lácio?
        Como os meus leitores já sabem, a saudade foi o pouco que me restou do meu jovem Pai. Sem ser poeta romântico, sofreu a sina cruel do morrer moço. 
        O que sei eu de meu progenitor - naquele tempo, mal entrado no primeiro ano do Roque Gonzalez, quando a figura paterna falava muito pouco com o filho menor, deixando as conversas por conta da mãe - não é decerto muito.
        Tenho impressão triste que beira a certeza, de que meu pai trazia com ele, na bagagem de sua  última viagem, o que pensava fossem os objetos que sinalizariam o começo de maior interação com o seu rebento.
         Carregava consigo  relógio de bolso tipo cebolão que marcará, enquanto vivo for, as quinze para o meio-dia, daquela infausta, terça-feira, vinte de junho de 1944.
         Pois papai, de quem antes não me lembra haver recebido  presentes desse gênero, os trazia muitos daquela breve e desgraçada viagem. Vinham os petrechos  do gaúcho, a cuia e a bomba do chimarrão, a sela de montaria, as botas e outros artigos de couro e metal. 
          Como o poeta destinado a ser fazendeiro do ar, a mim foi reservada a condição de ajudante de navegação no Guaíba e na Lagoa dos Patos, que é a iniciação dos afortunados que tenham  o pai  nauta. Com efeito, estava por terminar o barco mandado fazer pelo amigo Breno Caldas e por meu pai José Raphael, destinado às ditas águas fluviais, de que  o filho participaria  como aprendiz de grumete. A par das águas, os demais objetos apontavam para os rituais do gaúcho e a via da equitação, em que mãe e pai se distinguiam.
             Hoje penso em Carlos Drummond de Andrade, que se intitulou fazendeiro do ar.  A mim, caberia, entre outras, a condição de grumete dos ares sulinos.
             Infelizmente, o baque surdo nas águas do Guaíba sinalizou o fim da moderníssima aeronave Lockheed Model 14 Super Electra, e das dez pessoas que transportava:  meu pai, José Raphael de Azeredo,   o comandante Ricardo Lau, o co-piloto Frederico Hochwart, e mais sete passageiros.
             Se o chofer de meu avô Romualdo errara o caminho do aeroporto por causa da chuva torrencial, estórias confusas marcaram aquele desastre nas águas turvas do Guaíba, nas vizinhanças da Pedra Redonda. Como o piloto investiu o Guaíba como se atravessasse nuvem, é provável  que tivesse a visão bastante prejudicada pela intempérie.
             Além disso, o violento choque, que espatifa o aparelho, faz supor erro do piloto Lau - ele não dispõe de altímetro. Pensa talvez atravessar nuvem, ao mergulhar nas águas do Guaíba. Tamanha é a força do choque, que arranca motores e cabine, e esfacela a fuselagem.
             Os restos mortais do comandante foram descobertos dias mais tarde, em meio a hélices torcidas e  motores destruídos.


( Fontes: Correio do Povo;Carlos Drummond de Andrade; histórico familiar )  

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