A saudade é um sentimento que tem
as cores das terras por onde andaram os nossos antepassados lusos. Já no
colégio ouvimos que esta palavra é única. Segundo nos contam, ela só existe em
português.
Desde criança, ouvi desconfiado e até mesmo
cético - embora só muito mais tarde viesse a saber o que a palavra significa -
quanto a esse suposto isolamento extremo da experiência da saudade.
Será que um
vocábulo pode ser assim tão simples e tristonho, e ao mesmo tempo seja patrimônio linguístico de o
que poetas parnasianos chamam a última flor do Lácio?
Como os meus
leitores já sabem, a saudade foi o pouco que me restou do meu jovem Pai. Sem
ser poeta romântico, sofreu a sina cruel do morrer moço.
O que sei eu
de meu progenitor - naquele tempo, mal entrado no primeiro ano do Roque
Gonzalez, quando a figura paterna falava muito pouco com o filho menor,
deixando as conversas por conta da mãe - não é decerto muito.
Tenho impressão
triste que beira a certeza, de que meu pai trazia com ele, na bagagem de
sua última viagem, o que pensava fossem
os objetos que sinalizariam o começo de maior interação com o seu rebento.
Carregava
consigo relógio de bolso tipo cebolão que
marcará, enquanto vivo for, as quinze para o meio-dia, daquela infausta,
terça-feira, vinte de junho de 1944.
Pois papai,
de quem antes não me lembra haver recebido presentes desse gênero, os trazia muitos daquela
breve e desgraçada viagem. Vinham os petrechos
do gaúcho, a cuia e a bomba do chimarrão, a sela de montaria, as botas e
outros artigos de couro e metal.
Como o poeta
destinado a ser fazendeiro do ar, a mim foi reservada a condição de ajudante de
navegação no Guaíba e na Lagoa dos Patos, que é a iniciação dos afortunados que
tenham o pai nauta. Com efeito, estava por terminar o
barco mandado fazer pelo amigo Breno Caldas e por meu pai José Raphael,
destinado às ditas águas fluviais, de que o filho participaria como aprendiz de grumete. A par das águas, os
demais objetos apontavam para os rituais do gaúcho e a via da equitação, em que
mãe e pai se distinguiam.
Hoje
penso em Carlos Drummond de Andrade, que se intitulou fazendeiro do ar. A mim, caberia, entre outras, a condição de
grumete dos ares sulinos.
Infelizmente, o baque surdo nas águas do
Guaíba sinalizou o fim da moderníssima aeronave Lockheed Model 14 Super Electra,
e das dez pessoas que transportava: meu
pai, José Raphael de Azeredo, o comandante Ricardo Lau, o co-piloto
Frederico Hochwart, e mais sete passageiros.
Se o
chofer de meu avô Romualdo errara o caminho do aeroporto por causa da chuva
torrencial, estórias confusas marcaram aquele desastre nas águas turvas do
Guaíba, nas vizinhanças da Pedra Redonda. Como o piloto investiu o Guaíba como
se atravessasse nuvem, é provável que tivesse
a visão bastante prejudicada pela intempérie.
Além
disso, o violento choque, que espatifa o aparelho, faz supor erro do piloto Lau
- ele não dispõe de altímetro. Pensa talvez atravessar nuvem, ao mergulhar nas
águas do Guaíba. Tamanha é a força do choque, que arranca motores e cabine, e
esfacela a fuselagem.
Os restos
mortais do comandante foram descobertos dias mais tarde, em meio a hélices
torcidas e motores destruídos.
( Fontes: Correio do
Povo;Carlos Drummond de Andrade; histórico familiar )
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