segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Imperativo ético ou político?

                   
         Embora militantes de sua candidatura, assim como parcela importante do Partido Democrata verifiquem da possibilidade de solicitar recontagem de votos em três estados - Michigan, Wisconsin e Pennsilvania - a inesperada derrota no colégio eleitoral  da candidata Hillary Clinton, decerto contragolpe que não fora sequer computado, perante o seu adversário republicano, Donald Trump, terá muito contribuído para um generalizado desânimo no campo democrata.
          Como não houve episódios manifestos de desrespeito à lei eleitoral americana, prevaleceu a princípio sensação generalizada nos segmentos que apoiavam Hillary, de incredulidade quanto à possibilidade - que infelizmente o cômputo dos votos, dentro do sistema americano de votação indireta, não tardaria muito em transformar em realidade - de que Hillary pudesse ser batida por Trump.
          Foi, no entanto, o que ocorreu dentro do sistema de colégio eleitoral, que data da promulgação da Constituição americana, ou seja, das últimas décadas do século XVIII.
          Tendo presentes, no entanto, os partidos que os apoiaram, os princípios nos quais se baseiam, a constelação das principais idéias-força por eles representadas, assim como características novas que informaram a campanha, a que cumpre somar a força dos preconceitos, o resultado final do embate presidencial de 2016 não deveria parecer tão surpreendente.
          Como Donald Trump montou no corcel do preconceito.  Não tardarei na análise do fator surpresa, com que Trump investiu contra o punhado de seus adversários republicanos. Com a exceção de uns poucos, que chegaram  mais além na caminhada pela nomination, nenhum deles surgiria como motivante à frente do novato político, apodado de candidato do verão. Contraposto à mediocridade no GOP, Trump, como demagogo consumado, soube lidar com os temores respectivos de suas bases (rejeição ao estrangeiro, transformado na ameaça do mexicano que atravessava a fronteira não só para tirar emprego de americanos, mas também para estuprar-lhe as mulheres. Em hábil jogada, Trump reunia a ameaça do alienígena, piorada com a transgressão sexual, e a solução, no velho muro sempre disponível para as civilizações que sentem ameaçadas a respectiva força e predominância. Nada melhor, nos tempos do chamado declínio (causado pela irresponsabilidade da guerra do jovem Bush), que o choque profilático de fazer do vizinho povo mexicano o bode expiatório para os turbadores problemas  ora enfrentados pela superpotência.
          Quem subestima seus inimigos, nas suas mãos perece. Há vários elementos constitutivos dessa tragi-comédia, que cedem o passo para os erros fundamentais em que incidiu o campo democrata. O partido do burrinho, que, na parte social, defende as boas causas (melhores condições para os pobres, maior taxação dos ricos, combate a todas as formas de preconceito) escolheu como sua campeã Hillary Clinton. Como esposa do presidente Bill Clinton tentou promover uma reforma da saúde, que foi derrubada por argumentos especiosos e no geral falsos. Mas a propaganda na tevê e o fato de a primeira dama não fosse ainda do ramo, facilitou em demasia a tarefa de seus adversários, a quem bastou uma habilíssima empulhação televisiva, que pôs por terra reforma sanitária que pareceu a muitos superior ao Obamacare do futuro.
             O casal Clinton também enfrentou um alegado escândalo - Whitewater - e uma longuíssima investigação por um temível Promotor Especial - Ken Starr - que foi chamado às pressas por um conciliábulo de raposas republicanas, que afastou o Promotor Fiske, demasiado sério e honesto para calçar as botas de quem se propunha afastar um casal ameaçador. A posse dos Senadores republicanos não teria êxito, embora exigisse aqui e ali os quase simulacros de suas libras de carne.
             Mas não nos delonguemos em velhas estórias,  pois aí estão as novas.
              Depois de uma longa caminhada, Hillary Clinton perdeu nas primárias a oportunidade de tornar-se a nominee do Partido Democrata. Tenho diante de mim a cena de Hillary reconhecendo a virtual vitória na longa travessia das primárias de 2008 diante do homo novus Barack Obama. No quadro, a expressão contrafeita do marido, o ex-presidente Bill Clinton.
             Seguiram-se as duas presidências de Obama - que ignorou a maldição de Mitch McConnell de que ele seria presidente de um só mandato...  Nos primeiros quatro anos,     Hillary seria uma grande Secretária de Estado, avivando nos republicanos o temor de que fosse parar na Casa Branca.
               Os fados dariam aos representantes do GOP a questão para  tentar enfraquecer politicamente Hillary, demasiado eficiente no Departamento de Estado. Foi o bárbaro assassínio, a doze de setembro de 2012, de um embaixador arabista, Christopher Stevens, por terroristas árabes.
                Iniciava-se para Hillary uma longa perseguição pelos representantes republicanos na Câmara Baixa. Sem sucesso, eles procuraram por todos os meios responsabilizá-la de alguma forma pelo que ocorrera em Benghazi. É interessante que o primeiro biênio de Obama, que o jovem ex-professor  dedicara em parte a seminários na Casa Branca, não deixaria de castigá-lo como o notório shellacking (tunda) que derrubou Nancy Pelosi da cadeira de Speaker, e entronisaria o GOP em sólida maioria que viria a ser reforçada por um competente guerrymander que até hoje perdura, e cuja existência é até hoje ignorada pela mídia, com as exceções de Elizabeth Drew e poucos outros.
                  Não tenho a intenção de alongar-me demasiado. Por isso dou um pulo ao processo eleitoral que culminou em novembro último, e que nos fez deparar ao incrível Donald Trump como presidente-eleito.
                  Não vou negar os erros da candidata democrata. O principal talvez tenha sido menosprezar o seu adversário. Tampouco parece apropriado chamar seus partidários de 'deploráveis'. A velha frase - quem despreza os seus inimigos nas suas mãos perece - se se afigura difícil ignorar a excessiva confiança da candidata democrata, ela não me parece bastante para explicar o revés sofrido.  
                   A falsa questão do servidor privado do computador de Hillary. Apesar das advertências amigas que recebeu de anteriores secretários de estado, quanto às insídias do uso de um computador particular para atender ao enorme volume da correspondência digital da principal autoridade do Departamento de Estado, Hillary, talvez pela própria confiante atitude na respectiva capacidade, ignorou esse monitum que não poucos colegas anteriores seus em Foggy Bottom lhe fizeram.
                     Tenho a quase certeza de que, após toda a provação experimentada, Hillary Clinton não reincidiria em tal erro. Por toda a exploração feita a respeito, vê-se claramente o caráter adjetivo desse equívoco.
                      Até mesmo uma pessoa como o republicano James B. Comey Jr, diretor do Federal Bureau of  Investigations não ousaria pronunciar-lhe qualquer falta mais grave por acaso cometida por causa desse impensado gesto.
                       Barack Obama,  sem o saber decerto, seria instrumento em cortar-lhe o crescimento da candidatura nas semanas finais da campanha, que se verificava notadamente na Carolina do Norte, estado que dava sinais bastante fortes de que voltaria ao aprisco democrata.
                       A súbita intervenção do sucessor de John Edgar Hoover, o diretor James Comey, com a sua declaração sobre a intempestiva reabertura da investigação sobre eventuais responsabilidades  de Hillary Clinton na questão do servidor privado, às vésperas da eleição, teve o condão de golpear  o     então crescimento da candidatura democrata em vários estados ainda indefinidos. Apesar de estigmatizada por boa parte do mundo político, Comey daria forte golpe no crescente apoio popular à  democrata, jogando confusão e incerteza  em um ambiente antes livre de tais dúvidas. Tudo isso estranhamente foi feito à revelia de seus superiores, que discordaram de sua atitude, e o que é mais grave, contra a tradição e as disposições da legislação que vedam tais posturas.
                           Como à intervenção de Comey nada correspondeu de concreto,  fica muito mais do que um ressaibo, e sim forte suspicácia de que a postura do Chefe do FBI - que mesmo antes de levantar fantasmas que depois não se   confirmariam - terá seguido ao estranhíssimo escopo que foi o de levantar um fantasma, às vésperas da eleição. Ao agir dessa maneira,  Mr James Comey assegura o próprio ingresso nos anais da política americana, de maneira tal que ironicamente supera os eventuais efeitos negativos da principal divindade do Federal Bureal of Investigations.
                             O que começara como parte da caminhada da mulher Hillary, e da afirmação do respectivo sexo depois de um tão longo predomínio do preconceito, termina quase em farsa, com a elevação ao mais alto posto da República a quem já deu sobejas mostras de não estar   à altura desse desafio.
                             Lamentavelmente a República americana parece colaborar para que  o antes chamado    declínio possa breve transformar-se em imagem bastante mais forte,  infelizmente dentro da lógica das civilizações, como o indica, nos seus doze volumes hoje talvez esquecidos, a magna obra do historiador inglês Arnold Toynbee.             
                                                                        

(Fontes: The New York Times, A Decadência do Ocidente, de Oswald Spengler, e A Study of History, de  Arnold Toynbee)                                                                  

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