Embora militantes de sua candidatura,
assim como parcela importante do Partido Democrata verifiquem da possibilidade
de solicitar recontagem de votos em três estados - Michigan, Wisconsin e
Pennsilvania - a inesperada derrota no colégio eleitoral da candidata Hillary Clinton, decerto
contragolpe que não fora sequer computado, perante o seu adversário
republicano, Donald Trump, terá muito contribuído para um generalizado desânimo
no campo democrata.
Como não houve episódios manifestos
de desrespeito à lei eleitoral americana, prevaleceu a princípio sensação
generalizada nos segmentos que apoiavam Hillary, de incredulidade quanto à
possibilidade - que infelizmente o cômputo dos votos, dentro do sistema americano
de votação indireta, não tardaria muito em transformar em realidade - de que
Hillary pudesse ser batida por Trump.
Foi, no entanto, o que ocorreu dentro
do sistema de colégio eleitoral, que data da promulgação da Constituição
americana, ou seja, das últimas décadas do século XVIII.
Tendo presentes, no entanto, os
partidos que os apoiaram, os princípios nos quais se baseiam, a constelação das
principais idéias-força por eles representadas, assim como características
novas que informaram a campanha, a que cumpre somar a força dos preconceitos, o
resultado final do embate presidencial de 2016 não deveria parecer tão
surpreendente.
Como Donald Trump montou no corcel do
preconceito. Não tardarei na
análise do fator surpresa, com que Trump investiu contra o punhado de seus
adversários republicanos. Com a exceção de uns poucos, que chegaram mais além na caminhada pela nomination, nenhum deles surgiria como
motivante à frente do novato político, apodado de candidato do verão.
Contraposto à mediocridade no GOP, Trump, como demagogo consumado, soube lidar
com os temores respectivos de suas bases (rejeição ao estrangeiro, transformado
na ameaça do mexicano que atravessava a fronteira não só para tirar emprego de
americanos, mas também para estuprar-lhe as mulheres. Em hábil jogada, Trump
reunia a ameaça do alienígena, piorada com a transgressão sexual, e a solução,
no velho muro sempre disponível para as civilizações que sentem ameaçadas a
respectiva força e predominância. Nada melhor, nos tempos do chamado declínio (causado pela
irresponsabilidade da guerra do jovem Bush), que o choque profilático de fazer
do vizinho povo mexicano o bode expiatório para os turbadores problemas ora enfrentados pela superpotência.
Quem subestima seus inimigos, nas suas
mãos perece. Há vários elementos constitutivos dessa tragi-comédia,
que cedem o passo para os erros fundamentais em que incidiu o campo democrata.
O partido do burrinho, que, na parte social, defende as boas causas (melhores
condições para os pobres, maior taxação dos ricos, combate a todas as formas de
preconceito) escolheu como sua campeã Hillary Clinton. Como esposa do
presidente Bill Clinton tentou promover uma reforma da saúde, que foi derrubada
por argumentos especiosos e no geral falsos. Mas a propaganda na tevê e o fato
de a primeira dama não fosse ainda do ramo, facilitou em demasia a tarefa de
seus adversários, a quem bastou uma habilíssima empulhação televisiva, que pôs
por terra reforma sanitária que pareceu a muitos superior ao Obamacare do
futuro.
O casal Clinton também enfrentou
um alegado escândalo - Whitewater - e uma longuíssima investigação por um
temível Promotor Especial - Ken Starr
- que foi chamado às pressas por um conciliábulo de raposas republicanas, que
afastou o Promotor Fiske, demasiado
sério e honesto para calçar as botas de quem se propunha afastar um casal
ameaçador. A posse dos Senadores republicanos não teria êxito, embora exigisse
aqui e ali os quase simulacros de suas libras de carne.
Mas não nos delonguemos em velhas
estórias, pois aí estão as novas.
Depois de uma longa caminhada,
Hillary Clinton perdeu nas primárias a oportunidade de tornar-se a nominee do
Partido Democrata. Tenho diante de mim a cena de Hillary reconhecendo a virtual
vitória na longa travessia das primárias de 2008 diante do homo novus Barack
Obama. No quadro, a expressão contrafeita do marido, o ex-presidente Bill
Clinton.
Seguiram-se as duas presidências
de Obama - que ignorou a maldição de Mitch McConnell de que ele seria
presidente de um só mandato... Nos
primeiros quatro anos, Hillary seria
uma grande Secretária de Estado, avivando nos republicanos o temor de que fosse
parar na Casa Branca.
Os fados dariam aos
representantes do GOP a questão para
tentar enfraquecer politicamente Hillary, demasiado eficiente no
Departamento de Estado. Foi o bárbaro assassínio, a doze de setembro de 2012,
de um embaixador arabista, Christopher Stevens, por terroristas árabes.
Iniciava-se para Hillary uma
longa perseguição pelos representantes republicanos na Câmara Baixa. Sem
sucesso, eles procuraram por todos os meios responsabilizá-la de alguma forma
pelo que ocorrera em Benghazi. É interessante que o primeiro biênio de Obama,
que o jovem ex-professor dedicara em
parte a seminários na Casa Branca, não deixaria de castigá-lo como o notório shellacking (tunda) que derrubou Nancy
Pelosi da cadeira de Speaker, e
entronisaria o GOP em sólida maioria que viria a ser reforçada por um
competente guerrymander que até hoje
perdura, e cuja existência é até hoje ignorada pela mídia, com as exceções de
Elizabeth Drew e poucos outros.
Não tenho a intenção de
alongar-me demasiado. Por isso dou um pulo ao processo eleitoral que culminou
em novembro último, e que nos fez deparar ao incrível Donald Trump como
presidente-eleito.
Não vou negar os erros da
candidata democrata. O principal talvez tenha sido menosprezar o seu
adversário. Tampouco parece apropriado chamar seus partidários de
'deploráveis'. A velha frase - quem despreza os seus inimigos nas suas mãos
perece - se se afigura difícil ignorar a excessiva confiança da candidata
democrata, ela não me parece bastante para explicar o revés sofrido.
A falsa questão do servidor
privado do computador de Hillary. Apesar das advertências amigas que recebeu de
anteriores secretários de estado, quanto às insídias do uso de um computador
particular para atender ao enorme volume da correspondência digital da
principal autoridade do Departamento de Estado, Hillary, talvez pela própria
confiante atitude na respectiva capacidade, ignorou esse monitum que não poucos
colegas anteriores seus em Foggy Bottom lhe fizeram.
Tenho a quase certeza de que, após
toda a provação experimentada, Hillary Clinton não reincidiria em tal erro. Por
toda a exploração feita a respeito, vê-se claramente o caráter adjetivo desse
equívoco.
Até mesmo uma pessoa como
o republicano James B. Comey Jr, diretor do Federal Bureau of Investigations não ousaria pronunciar-lhe
qualquer falta mais grave por acaso cometida por causa desse impensado gesto.
Barack Obama, sem o saber decerto, seria instrumento em
cortar-lhe o crescimento da candidatura nas semanas finais da campanha, que se
verificava notadamente na Carolina do Norte, estado que dava sinais bastante
fortes de que voltaria ao aprisco democrata.
A súbita intervenção do
sucessor de John Edgar Hoover, o diretor James Comey, com a sua declaração
sobre a intempestiva reabertura da investigação sobre eventuais
responsabilidades de Hillary Clinton na
questão do servidor privado, às vésperas da eleição, teve o condão de golpear o então crescimento da candidatura democrata em vários estados ainda
indefinidos. Apesar de estigmatizada por boa parte do mundo político, Comey
daria forte golpe no crescente apoio popular à
democrata, jogando confusão e incerteza
em um ambiente antes livre de tais dúvidas. Tudo isso estranhamente foi
feito à revelia de seus superiores, que discordaram de sua atitude, e o que é
mais grave, contra a tradição e as disposições da legislação que vedam tais
posturas.
Como à intervenção
de Comey nada correspondeu de concreto,
fica muito mais do que um ressaibo, e sim forte suspicácia de que a
postura do Chefe do FBI - que mesmo antes de levantar fantasmas que depois não
se confirmariam - terá seguido ao estranhíssimo
escopo que foi o de levantar um fantasma, às vésperas da eleição. Ao agir dessa
maneira, Mr James Comey assegura o
próprio ingresso nos anais da política americana, de maneira tal que
ironicamente supera os eventuais efeitos negativos da principal divindade do
Federal Bureal of Investigations.
O que começara
como parte da caminhada da mulher Hillary, e da afirmação do respectivo sexo
depois de um tão longo predomínio do preconceito, termina quase em farsa, com a
elevação ao mais alto posto da República a quem já deu sobejas mostras de não estar
à
altura desse desafio.
Lamentavelmente a República americana parece
colaborar para que o antes chamado declínio possa breve transformar-se em imagem
bastante mais forte, infelizmente dentro
da lógica das civilizações, como o indica, nos seus doze volumes hoje talvez
esquecidos, a magna obra do historiador inglês Arnold Toynbee.
(Fontes: The New York
Times, A Decadência do Ocidente, de Oswald Spengler,
e A Study of History, de Arnold Toynbee)