Como jovem colega de
Guimarães Rosa - ele então chefiava a Divisão de Fronteiras do Itamaraty -
mantive com ele relação respeitosa, de secretário para embaixador.
Recordo que me escrevera quando,
segundo-secretário, arrecém chegara a Paris, para solicitar-me que contactasse
editor da próxima tradução do Grande Sertão - Veredas, e na sua carta me
introduziu a um verbo, que na época desconhecia.
Ao solicitar-me o
favor, com a sua habitual delicadeza se desculpava por fazê-lo na fase em que
me encontrava, tratando de arranchar-me
no novo posto.
Com o passar do tempo, a nossa relação nunca
foi estreita, mas seria sempre cordial. Recordo-me de outra vez, também nos
corredores do velho Itamaraty, em que me dirigi em alemão para o colega Paulo
Sérgio Nery - que tampouco está entre nós
- e de propósito fi-lo em alemão, lingua que ambos conhecíamos. Rosa estava por perto, e por tampouco ignorar
o idioma de Goethe (trabalhara na missão em Berlin às vésperas da II Guerra)
achou graça em que me expressasse de tal forma.
Como
apreciávamos Guimarães Rosa e seus
livros, eu e um colega do Mello e Souza fomos à posse do autor de Grande Sertão: Veredas, na Academia. Rosa
adiara essa cerimônia o quanto pudera. Receava, por certo, a emoção, mas ao
cabo de um tempo considerável, acabou concordando em vestir o fardão e
enfrentar aquela mesma emoção que tanto
temia.
O salão estava apinhado, fazia muito
calor, e Rosa suava em bicas. Notei, à
distância, a cor demasiado esbranquiçada de sua pele, o desconforto que sentia
com o fardão, e as bagas de suor que lhe desciam pela testa e a face.
Os convidados dele se acercavam e
se intuía, mesmo à distância, o desconforto que sentia, como se a glória, juntada
à canícula carioca, lhe criasse evento em que tudo aquilo que tanto temera - seja
o transtorno do pesado fardão verde, o abraço de tantos colegas escritores
misturados à multidão retirada das incontáveis páginas da própria existência, a tentar privar, naquele atropelo,
de instantes de uma glória de que pensavam poder participar, ou então a
relembrar-lhe de esquecidas peripécias, perguntando-lhe
naquele acosso como se sentia, ou a trazer-lhe recados extraídos das funduras
da memória, tudo aquilo ressurgindo diante dele com o ímpeto de velhos conhecidos,
e iria configurar um particular inferno, que sem ser de Dante, podia talvez
incomodar-lhe ainda mais, ao juntar-se às calenturas tropicais.
Quando o coração cedeu diante de toda
aquela massa de súbita realização, e o portentoso escritor que tão validamente
postergara o terrível encontro marcado com a glória - por demasiado bem
conhecer a própria humana fraqueza - ora se via encerrado em caixão, para
colher o sardônico prêmio de ser sepulto em capela especialmente destinada aos
chamados "imortais" da Academia Brasileira de Letras.
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