sábado, 18 de novembro de 2017

João Guimarães Rosa, i.m.

                                      
        Como jovem colega de Guimarães Rosa - ele então chefiava a Divisão de Fronteiras do Itamaraty - mantive com ele relação respeitosa, de secretário para embaixador.
        Recordo que me escrevera quando, segundo-secretário, arrecém chegara a Paris, para solicitar-me que contactasse editor da próxima tradução do Grande Sertão - Veredas, e na sua carta me introduziu a um verbo, que na época desconhecia.
        Ao solicitar-me o favor, com a sua habitual delicadeza se desculpava por fazê-lo na fase em que me encontrava, tratando de arranchar-me no novo posto.  
         Com o passar do tempo, a nossa relação nunca foi estreita, mas seria sempre cordial. Recordo-me de outra vez, também nos corredores do velho Itamaraty, em que me dirigi em alemão para o colega Paulo Sérgio Nery - que tampouco está entre nós  - e de propósito fi-lo em alemão, lingua que ambos conhecíamos.  Rosa estava por perto, e por tampouco ignorar o idioma de Goethe (trabalhara na missão em Berlin às vésperas da II Guerra) achou graça em que me expressasse de tal forma.
          Como apreciávamos  Guimarães Rosa e seus livros, eu e um colega do Mello e Souza fomos à posse do autor de Grande Sertão: Veredas, na Academia. Rosa adiara essa cerimônia o quanto pudera. Receava, por certo, a emoção, mas ao cabo de um tempo considerável, acabou concordando em vestir o fardão e enfrentar aquela mesma emoção  que tanto temia.
            O salão estava apinhado, fazia muito calor, e Rosa suava em bicas.  Notei, à distância, a cor demasiado esbranquiçada de sua pele, o desconforto que sentia com o fardão, e as bagas de suor que lhe desciam pela testa e a face.
             Os convidados dele se acercavam e se intuía, mesmo à distância, o desconforto que sentia, como se a glória, juntada à canícula carioca, lhe criasse evento em que tudo aquilo que tanto temera - seja o transtorno do pesado fardão verde, o abraço de tantos colegas escritores misturados à multidão retirada das incontáveis páginas da própria existência, a tentar privar, naquele atropelo, de instantes de uma glória de que pensavam poder participar, ou então a relembrar-lhe de esquecidas peripécias,  perguntando-lhe naquele acosso como se sentia, ou a trazer-lhe recados extraídos das funduras da memória, tudo aquilo ressurgindo diante dele com o ímpeto de velhos conhecidos, e iria configurar um particular inferno, que sem ser de Dante, podia talvez incomodar-lhe ainda mais, ao juntar-se às calenturas tropicais.

              Quando o coração cedeu diante de toda aquela massa de súbita realização, e o portentoso escritor que tão validamente postergara o terrível encontro marcado com a glória - por demasiado bem conhecer a própria humana fraqueza - ora se via encerrado em caixão, para colher o sardônico prêmio de ser sepulto em capela especialmente destinada aos chamados "imortais" da Academia Brasileira de Letras.         

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