A carta de seis
paginas, assinada pela Primeira-Ministro Theresa May, dirigida ao Presidente do
Conselho da Europa, Donald Tusk, pode ser
descrita como a primeira manifestação do Reino Unido, enquanto primeiro
membro da União Européia a comunicar oficialmente à direção da organização de
Bruxelas o seu desígnio de sair
do organismo no qual ingressara há pouco mais de quarenta anos.
Começa assim o processo de separação e a
duração dessa fase transitória é de pelo menos dois anos. Entrementes, o Reino
Unido continuará sendo parte da União Européia. A primeira consequência
tangível é que o governo de Londres não
terá direito, entre outros, a firmar acordos particulares de comércio com
outros países.
Dada a complexidade das relações estabelecidas nesses últimos 44 anos,
compreende-se que o biênio pode ser considerado como exigência modesta,
suscetível de forçar uma maior extensão nesse primeiro prazo, atendidos os
inúmeros laços que os primeiros tempos da união e sua consequente dinâmica
terão forjado.
A Álbion, depois de um longo inverno em
que vãmente batera à porta da organização, encontrara nos primeiros tempos a
dinâmica das jovens uniões, em que as economias britânica e europeia se viam
envolvidas pelo típico otimismo empreendedor dessas relações.
Não cabe aqui um post-mortem dessa relação, que no governo do trabalhista Tony Blair enfrentara
e vencera o desafio da tentação de cortar as amarras com a burocracia de
Bruxelas.
É natural que o país que tome a
iniciativa da ruptura dessa relação deva assumir os custos que a sua partida
acarretará para a União Européia. Grosso
modo, um cálculo inicial desses
compromissos financeiros assumidos pelo Reino Unido no contexto do
orçamento europeu devem andar pelos sessenta bilhões de euros.
Quanto ao aspecto humano, o problema tampouco será dos menores. Dada a livre circulação das pessoas no espaço do Mercado Comum Europeu, não é fácil quantificar os respectivos números que resolveram residir de forma permanente. Estima-se, contudo, que cerca de três milhões deixaram o Continente para viver e trabalhar no Reino Unido. Houve também, como é lógico, o movimento contrário, em número menor, mas que também não deixa de ser grande, eis que o ponto de partida se refere a um só país, a velha Inglaterra, abrangendo um milhão de ingleses que resolveu transferir-se para o Continente.
Os direitos dessas pessoas carecem de
ser levados em conta e, sobretudo, respeitados. Como será feito, por enquanto é
uma angustiada interrogação.
Por outro lado, dois países membros do Reino Unido votaram contra o Bréxit: a Irlanda do Norte que enfrenta grave crise política, eis que poderia integrar-se na Irlanda (que já faz parte da U.E.), mas há o problema de que a Irlanda do Norte enfrenta o desafio de condados protestantes que preferem optar pelo Reino Unido... Por outro lado, desde muito a Escócia manifesta a aspiração de independizar-se da Inglaterra e unir-se à União Européia. A dificuldade do problema está na resistência de Londres em liberar a Escócia. Os escoceses, seguindo esse manifesto desejo, votaram em favor de Bruxelas. Por outro lado, a doce Theresa May já fez saber que, mesmo no caso em que o referendo escocês seja endossado pela maioria da Escócia, a decisão ainda dependeria de autorização do Parlamento britânico. A regra tem óbvio cunho imperialista, e dificilmente poderá ser mantida por Westminster. Assim, pela cartilha européia a Escócia reencontrará a sua antiga aspiração libertária, ao reiterar o seu voto por Bruxelas.
Outro ponto controverso, e no qual a posição de Londres, pelo seu ressaibo imperialista, tenderá a ser ainda menos defensável: Londres, como assinala Gilles Lapouge, o veterano correspondente francês do Estadão, tem a idéia fixa de manter o acesso ao mercado único, sem contudo desejar sujeitar-se à livre circulação de pessoas.
A enunciação desse ponto nos permite
versar dois traços de grande importância. É óbvia a grande influência na
votação favorável ao bréxit da
xenofobia. Assim sendo, surge pela frente um magno problema a respeito de que o
negociador do Parlamento Europeu para o Brexit, Guy Verhofstadt,
foi meridianamente claro: " As quatro liberdades (livre circulação
das pessoas, de mercadorias, serviços e capitais) são indissociáveis. Se o
Reino Unido rejeita a livre circulação e a competência do Tribunal de Justiça
Europeu, não terá mais, em consequência, acesso ao mercado interno europeu. Da
mesma forma, se Londres quiser pode negociar seus acordos de livre-comércio,
mas não poderá permanecer, como deseja fortemente, na união alfandegária
europeia (...) O Reino Unido quer os direitos em aceitar os deveres da
contrapartida. Sobre esses pontos, a UE se mostrará inflexível."
Quanto a outros estragos, nesse contexto ainda é prematuro tentar deles avaliar a eventual gravidade. Mas não se deve alimentar dúvidas quanto aos danos que a decisão do bréxit, alimentada pelo velho isolacionismo britânico, e pela desconfiança em relação ao alienígena (versão de uma xenofobia light como esboçada supra) há de depositar na soleira da altiva Ilha, por conta de um voto irrefletido do povão. Nessa quadra, a tão prezada e mesmo amada (por eles) libra esterlina (não a trocaram pelo euro, e nesse particular se deve afirmar serenamente que a decisão foi decerto correta, posto que tomada por outras razões, que não muito tinham a ver com finanças). En passant, ninguém duvida que a economia britânica - que já não tem a força de outrora - sofrerá com a ruptura. A própria amada libra esterlina deve perder de 20% a 30% do respectivo valor cambial.
No que concerne ao comércio, tudo dependerá da evolução das negociações. Se Bruxelas se opuser a mudanças muito radicais, aí poderá estar uma saída para os dois cônjuges. Alcançados aqueles pontos em que a respectiva vaidade pode servir como maneira de compor e minimizar as diferenças - não subestimem as insídias do comércio e as possibilidades de que o principismo das duas partes possa ser superado com óbvio proveito para ambas.
Quanto à xenofobia, ambas
as Partes têm interesse em não exagerar. Existem países ou governos xenófobos
na Europa Continental, como é o caso da Hungria de Viktor Orban. Já a velha
Inglaterra terá motivado boa parte do triste êxito do brexit como insumo para
essa decisão estouvada e que está na manifesta contra-corrente da História.
Mas se o inglês não é tão
expansivo nesse campo quanto o francês, tampouco se poderia incluí-lo como de
rábida inclinação à xenofobia.
Quanto à suposta explosão da
xenofobia na terra gaulesa, por conta de surpreendente desempenho eleitoral de
Marine Le Pen, assumo o perigo de discordar redondamente da suposta ameaça.
Assim como se embaíu o antigo Primeiro Ministro francês, o socialista Lionel Jospin, com la gauche pluriel (a esquerda plural) e
ele próprio acreditou nessa possibilidade, incentivando os respectivos aliados
a votarem no primeiro turno da eleição presidencial nas respectivas associações, não é que a
ingenuidade do Primeiro Ministro francês incentivando a esquerda plural deu num
resultado previsível, decorrente das pequenas-grandes ambições dos respectivos
aliados. Todos eles jogaram os respectivos votos nos representantes do próprio
partido. O socialista Jospin, por causa disso
sequer foi para o turno final, enquanto Le
Pen, o representante da extrema direita, se tornava o candidato ao Elysée.
Mas a suposta ameaça do Front National não funcionou e se Le Pen
foi para o segundo turno, tal não impediu que fosse derrotado pela coalizão de
todas as forças do arco democrático, sendo reeleito Jacques Chirac, da direita gaullista moderada.
Por isso me abstenho de fazer grandes
prognósticos que muito dependerão de pequenas escolhas e de eventuais tropeços
de parte a parte no futuro.
Estamos apenas no começo de um processo, administrado é bem verdade, sobretudo do lado britânico, por personalidades que me parecem estar muito aquém do papel que lhes é imposto pelo Senhor da História.
Quando estamos no terreno das
previsões - e do espaço que se tem pela frente - será bom ter presente quanto
nos vale a prudência, e não só para nós, quanto tal previsão pode ser lábil e
dependente de tantas condições, que o melhor seria, no propósito, lembrar a
velha censura de J.-J. Rousseau a livro do Abbé de St. Pierre: "des grandes idées et des petites vues"
(grandes idéias e estreitas visões (da realidade).
( Fontes: Gilles Lapouge (Estado de S. Paulo),
Jean-Jacques Rousseau )
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