A vida tem caminhos que nem sempre
nos mantêm junto a pessoas a quem distinguimos pelo respeitoso afeto. Esse
predicado que realça e enobrece relações
será triste condicionante da realidade que preside a nossas existências.
Ao
empurrar-nos para frente, somos
forçados, mesmo sem disso estarmos as mais das vezes conscientes, a fazer
escolhas que amiúde quase passam
desapercebidas no torvelinho do dia-a-dia que, pela ação de agentes vários - de
que sequer estamos na verdade conscientes - contribuirá de forma inexorável para em momento determinado nos vermos
projetados dentro de outra realidade.
Por vezes, se
terá ainda a consciência de que somos levados por uma corrente - que nos está conduzindo a situações
imprevistas e de que não tínhamos sequer noção há poucos meses atrás.
Os jovens
crescem, seu círculo de relações se
alarga, e - o que seria o fator determinante - as suas vistas sentem a
necessidade de fazer alterações de curso, decisões essas muita vez que sentimos
a posteriori.
Desde algum
tempo ajudava minha mãe a preparar o seu imposto de renda, ocasião em que me
condoía a parcimônia de meios de que ela dispunha. Era ainda menor, mas o meu
feitio me empurrava para assumir mais obrigações.
Que eu
fizesse a sua declaração, já representava um contributo meu a sua faina diária.
"Mãe,
gostaria que a senhora me deixasse fazer a sua declaração. Sinto que não me
será difícil preenchê-la. E o mais importante é que assim a senhora economiza o
que hoje paga para o contador, a que ainda tem de procurar na cidade, para que
lhe faça a declaração."
Minha
mãe, que nunca teve empregada depois de enviuvar - e que disso sofreria as
cruéis consequências - não era de muitas palavras, às vezes.
Se bem me lembro, ela me contemplou com
aqueles olhos doces que a vida maltratara, e disse, com a sua inata delicadeza:
"Obrigado, filho."
E
decidido estava.
*
Estudava eu na época, já em estabelecimento de ensino em Copacabana. Não
me recordo bem de o que terá determinado a minha transferência do Anglo
Americano, colégio de classe média em Botafogo,
para o Mello e Souza, que então tinha duas seções separadas. A primeira,
dando para a Avenida Nossa Senhora de Copacabana, entre as ruas transversais
Bolivar e Aires Saldanha, que se destinava a primário e ginásio; e a segunda,
ligada àquela por um portão interno (os dois terrenos eram adjacentes), ficava
na própria Aires Saldanha, em casarão caiado de branco, onde estavam os cursos
do Clássico e do Científico.
Guardo boa lembrança do Anglo, de seus professores, a maioria gente
dedicada (as biscas são estatísticamente inevitáveis), e como poderei
esquecer-me do professor de português que, em aula, elogiou uma composição
minha, sobretudo pela escolha de linguagem que para a minha idade, apesar de
adequada, parecia inconsueta. Os
encômios a outrem caem de hábito em
ouvidos de mercador. Se eu, pobre mortal, lhe esqueci o nome, as palavras
generosas as guardo esculpidas naquela memória de que só nos separamos pela
nossa própria condição.
O
Mello e Souza foi um parêntese feliz na minha trajetória como aluno. As classes
eram mistas, o que representou para mim agradável surpresa. Na verdade, a designação é um tanto
enganosa, eis que estávamos cercados de moças jovens e bonitas. A representação
masculina, com algumas variações, que começara um pouco maior - no final, ficou
mais ou menos em cinco - sempre foi minoritária diante das mulheres.
Povoam a minha lembrança do Mello e Souza aquelas visões de que o
carrossel da vida depura. Os chatos e as cavalgaduras existirão sempre. E se a lenta
erosão da memória os tornou irrelevantes, não vale a pena reexumar as exceções.
Assim, quando era
estudante do Clássico, tendo já o meu Norte fixado no encontro marcado com a
Diplomacia, voltamos a São Paulo, para gozar da companhia dos padrinhos.
*
Terei acaso achado os
tios mais velhos? Os jovens, pela própria situação, não pensam muito na
velhice.
Encontrei os meus
companheiros de jogos e brincadeiras um pouco mais taludos, como seria natural.
De noite, a presença da
tevê se adensara. Chico e Bi assistiam a muitos programas. Meu padrinho continuava a ler os
jornais - a Gazeta, a Folha, o Estado de S. Paulo (as simpatias por este último
variavam- meu tio era getulista, e estávamos, sem sabê-lo, nos primórdios do
último governo do Presidente Getúlio Vargas).
Eu passava por fase
oposicionista. Criticava amiúde o presidente e sua política, mormente com respeito
ao crescimento da inflação.
A diferença que encontrei na Turquia
26 foi, para minha surpresa, no padrinho Chico. Pareceu-me mais animado e até espevitado.
Por sua vez, a madrinha, com o seu jeito plácido, não registrava mudanças visíveis. Sem embargo, as aparências
por vezes enganavam no que tange à sua disposição.
Quem acaso pensaria na sua férrea determinação, se a visse de vez em
quando? Parecia plácida personalidade,
incapaz de matar uma mosca. Aquele seu sorriso quase beatífico poderia fazer
crer em alguém desses que estão de bem com a vida, e a tudo contemplam com
meiga ternura, como se estivessem de amor com o mundo.
E, no entanto, será difícil imaginar alguém que mudasse tanto. A face
risonha, quase simplória se transformava em um rictus de marmóreas feições, os olhos brilhando com a centelha da
raiva e do gênio. Sem embargo, era raro vê-la nessa condição. Em geral, a
madrinha seria a expressão de quase beatífica suavidade. Nela a transformação
constituía lento processo, em que a raiva se vai formando e tensionando com
vagar. Por muito tempo, pensara que a Bi, a carinhosa madrinha, que dizia
assustar-se com os meus truques de criança, era criatura doce, suave, em geral
risonha, que pairava na sua residência, sempre com palavras atenciosas para
todos.
Não obstante, para mim, não
ousaria atribuir-lhe dupla personalidade. O que espantava era o alter-ego da ira irrompendo para assumir
situação que, lá dentro de sua mente, durara demasiado, e que de repente carecia
de ser tratada de forma radical.
Com o tempo, entendi bem as cautelas do padrinho Chico com a esposa
Deborah enraivecida.
Só uma vez, em momento de candura, o padrinho Chico me diria: "Você
não pode imaginar o gênio da minha mulher."
Nunca mais ele me diria palavra sobre tal comportamento.
Recém-chegados e habituados aos programas do casal, estranhamos, eu e
minha mãe, que nos levassem para um programa diferente.
Bi nos explicou, sem adentrar muito em detalhes, que nos convidava uma
secretária da Swift. Como isso nos pareceu variação nos costumes do casal,
ficamos curiosos em saber como era a tal reunião à qual íamos de cambulhada.
Lá chegados, vimos
várias coisas. A casa ficava em um bairro um pouco diverso do Jardim Europa. A
gente me pareceu mais simples. A tal secretária, no entanto, de que já esqueci
o nome, me pareceu tratar o casal como se buscasse aparentar uma familiaridade inexistente.
Mais desabrida com
o patrão, a secretária me pareceu um pouquinho vulgar. De vez em quando olhava
para a minha tia, pois lhe conhecia o gênio, e eu me perguntava por quanto
tempo a Bi aguentaria aquilo.
Por sua vez, o
Chico semelhava estar ali menos como patrão, do que enquanto cavalheiro da
simpatia da anfitriã.
O padrão da noite
não mudou muito. As gracinhas da secretária se
repetiam, embora ela fosse hábil o suficiente para pisar em terreno
traiçoeiro. Ela ficava mais nos gestos, embora por vezes assomasse palavra de
duplo sentido, a que viria acoplada - mas dirigida a Deborah - outra palavra
de elogio à esposa do patrão.
Chico parece que
estava noutra. Pensei que estivesse um pouco alegrinho, mas talvez fosse reação
de quem apreciava a circunstância de estar sendo objeto de gracinhas de duplo
sentido por uma subordinada sua.
O padrinho, por não ser muito
forte para bebidas, em geral evitava
ingerir além do que a natureza o predispusera.
A noitada continuou
por algum tempo, até que a madrinha se conscientizou de que já bastava.
"Lanzetta, é
hora de nos despedirmos de sua secretária e da família."
Chico conhecia com
quem lidava. No seu terreiro, a Swift,
quem cantava era ele. Mas a vida o
ensinara que fora do trabalho, era a esposa quem tinha a última palavra.
Na volta para casa,
o carro seguiu em silêncio. Com alívio e um pouco de remorso - a secretária
caprichara nas iguarias e nos refrescos - deixamos para trás os adeuzinhos de
secretária e marido. Este último, figura um tanto patética, de que só notei entusiasmo na maneira com que
relatou-nos os hábitos dipsômanos do
dia-a-dia.
Já adiantados na travessia para o Jardim
Europa, ouviu-se, por fim, a sentença da
madrinha.
" Lanzetta, nessa casa nunca mais ponho os pés."
Voltou então o silêncio
no carro, até que o chauffeur o quebraria, já na rua Turquia, para saber do diretor
da Swift em que hora deveria passar para apanhá-lo no dia seguinte.
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