sábado, 1 de outubro de 2016

Lembranças do Padrinho Chico (XVI)

   

         A vida tem caminhos que nem sempre nos mantêm junto a pessoas a quem distinguimos pelo respeitoso afeto. Esse predicado que realça e enobrece  relações será triste condicionante da realidade que preside a nossas existências.
         Ao empurrar-nos para  frente, somos forçados, mesmo sem disso estarmos as mais das vezes conscientes, a fazer escolhas que amiúde quase  passam desapercebidas no torvelinho do dia-a-dia que, pela ação de agentes vários - de que sequer estamos na verdade conscientes - contribuirá de forma inexorável  para em momento determinado nos vermos projetados dentro de outra realidade.
         Por vezes, se terá ainda a consciência de que somos levados por  uma corrente - que nos está conduzindo a situações imprevistas e de que não tínhamos sequer noção há poucos meses atrás.
          Os jovens crescem,  seu círculo de relações se alarga, e - o que seria o fator determinante - as suas vistas sentem a necessidade de fazer alterações de curso, decisões essas muita vez que sentimos a posteriori.
           Desde algum tempo ajudava minha mãe a preparar o seu imposto de renda, ocasião em que me condoía a parcimônia de meios de que ela dispunha. Era ainda menor, mas o meu feitio me empurrava para assumir mais obrigações.
           Que eu fizesse a sua declaração, já representava um contributo meu a sua faina diária.
            "Mãe, gostaria que a senhora me deixasse fazer a sua declaração. Sinto que não me será difícil preenchê-la. E o mais importante é que assim a senhora economiza o que hoje paga para o contador, a que ainda tem de procurar na cidade, para que lhe faça a declaração."
              Minha mãe, que nunca teve empregada depois de enviuvar - e que disso sofreria as cruéis consequências - não era de muitas palavras, às vezes.
               Se bem me lembro, ela me contemplou com aqueles olhos doces que a vida maltratara, e disse, com a sua inata delicadeza:
                "Obrigado, filho."
                E decidido estava.
                                                         *
                 Estudava eu na época, já em estabelecimento de ensino em Copacabana. Não me recordo bem de o que terá determinado a minha transferência do Anglo Americano, colégio de classe média em Botafogo,  para o Mello e Souza, que então tinha duas seções separadas. A primeira, dando para a Avenida Nossa Senhora de Copacabana, entre as ruas transversais Bolivar e Aires Saldanha, que se destinava a primário e ginásio; e a segunda, ligada àquela por um portão interno (os dois terrenos eram adjacentes), ficava na própria Aires Saldanha, em casarão caiado de branco, onde estavam os cursos do Clássico e do Científico.
                   Guardo boa lembrança do Anglo, de seus professores, a maioria gente dedicada (as biscas são estatísticamente inevitáveis), e como poderei esquecer-me do professor de português que, em aula, elogiou uma composição minha, sobretudo pela escolha de linguagem que para a minha idade, apesar de adequada, parecia inconsueta.  Os encômios a outrem caem de hábito  em ouvidos de mercador. Se eu, pobre mortal, lhe esqueci o nome, as palavras generosas as guardo esculpidas naquela memória de que só nos separamos pela nossa própria condição.
                    O Mello e Souza foi um parêntese feliz na minha trajetória como aluno. As classes eram mistas, o que representou para mim agradável  surpresa. Na verdade, a designação é um tanto enganosa, eis que estávamos cercados de moças jovens e bonitas. A representação masculina, com algumas variações, que começara um pouco maior - no final, ficou mais ou menos em cinco - sempre foi minoritária diante das mulheres.
                      Povoam a minha lembrança do Mello e Souza aquelas visões de que o carrossel da vida depura. Os chatos e as cavalgaduras existirão sempre. E se a lenta erosão da memória os tornou irrelevantes, não vale a pena reexumar as exceções.
                      Assim, quando era estudante do Clássico, tendo já o meu Norte fixado no encontro marcado com a Diplomacia, voltamos a São Paulo, para gozar da companhia dos padrinhos.
                                                               *
                      Terei acaso achado os tios mais velhos? Os jovens, pela própria situação, não pensam muito na velhice. 
                      Encontrei os meus companheiros de jogos e brincadeiras um pouco mais taludos, como seria natural.
                      De noite, a presença da tevê se adensara. Chico e Bi assistiam a muitos  programas. Meu padrinho continuava a ler os jornais - a Gazeta, a Folha, o Estado de S. Paulo (as simpatias por este último variavam- meu tio era getulista, e estávamos, sem sabê-lo, nos primórdios do último governo do Presidente Getúlio Vargas).
                         Eu passava por fase oposicionista. Criticava amiúde o presidente e sua política, mormente com respeito ao crescimento da inflação.
                         A diferença que encontrei na Turquia 26 foi, para minha surpresa, no padrinho Chico. Pareceu-me mais animado e até  espevitado.  Por sua vez, a madrinha, com o seu jeito plácido, não registrava  mudanças visíveis. Sem embargo, as aparências por vezes enganavam no que tange à sua disposição.
                          Quem acaso pensaria na sua férrea determinação, se a visse de vez em quando?  Parecia plácida personalidade, incapaz de matar uma mosca. Aquele seu sorriso quase beatífico poderia fazer crer em alguém desses que estão de bem com a vida, e a tudo contemplam com meiga ternura, como se estivessem de amor com o mundo.
                            E, no entanto, será difícil imaginar alguém que mudasse tanto. A face risonha, quase simplória se transformava em um rictus de marmóreas feições, os olhos brilhando com a centelha da raiva e do gênio.  Sem embargo,  era raro vê-la nessa condição. Em geral, a madrinha seria a expressão de quase beatífica suavidade. Nela a transformação constituía lento processo, em que a raiva se vai formando e tensionando com vagar. Por muito tempo, pensara que a Bi, a carinhosa madrinha, que dizia assustar-se com os meus truques de criança, era criatura doce, suave, em geral risonha, que pairava na sua residência, sempre com palavras atenciosas para todos.
                              Não obstante, para mim, não ousaria atribuir-lhe dupla personalidade. O que espantava era o alter-ego da ira irrompendo para assumir situação que, lá dentro de sua mente, durara demasiado, e que de repente carecia de ser tratada de forma radical.
                             Com o tempo, entendi bem as cautelas do padrinho Chico com a esposa Deborah enraivecida.
                             Só uma vez, em momento de candura, o padrinho Chico me diria: "Você não pode imaginar o gênio da minha mulher."
                             Nunca mais ele me diria palavra sobre tal comportamento.
                             Recém-chegados e habituados aos programas do casal, estranhamos, eu e minha mãe, que nos levassem para um programa diferente. 
                             Bi nos explicou, sem adentrar muito em detalhes, que nos convidava uma secretária da Swift. Como isso nos pareceu variação nos costumes do casal, ficamos curiosos em saber como era a tal reunião à qual íamos de cambulhada.
                             Lá chegados, vimos várias coisas. A casa ficava em um bairro um pouco diverso do Jardim Europa. A gente me pareceu mais simples. A tal secretária, no entanto, de que já esqueci o nome, me pareceu tratar o casal como se  buscasse  aparentar uma  familiaridade inexistente.
                             Mais desabrida com o patrão, a secretária me pareceu um pouquinho vulgar. De vez em quando olhava para a minha tia, pois lhe conhecia o gênio, e eu me perguntava por quanto tempo a Bi aguentaria aquilo.
                             Por sua vez, o Chico semelhava estar ali menos como patrão, do que enquanto cavalheiro da simpatia da anfitriã.
                             O padrão da noite não mudou muito. As gracinhas da secretária se  repetiam, embora ela fosse hábil o suficiente para pisar em terreno traiçoeiro. Ela ficava mais nos gestos, embora por vezes assomasse palavra de duplo sentido, a que viria acoplada - mas dirigida a Deborah - outra palavra de elogio à esposa do patrão.
                            Chico parece que estava noutra. Pensei que estivesse um pouco alegrinho, mas talvez fosse reação de quem apreciava a circunstância de estar sendo objeto de gracinhas de duplo sentido por uma subordinada sua.
                            O padrinho, por não ser muito forte  para bebidas, em geral evitava ingerir além do que a natureza o predispusera.
                            A noitada continuou por algum tempo, até que a madrinha se conscientizou de que já bastava.
                            "Lanzetta, é hora de nos despedirmos de sua secretária e da família."                         

                           Chico conhecia com quem lidava. No seu terreiro, a Swift, quem cantava era ele.  Mas a vida o ensinara que fora do trabalho, era a esposa quem tinha a última palavra.

                            Na volta para casa, o carro seguiu em silêncio. Com alívio e um pouco de remorso - a secretária caprichara nas iguarias e nos refrescos - deixamos para trás os adeuzinhos de secretária e marido. Este último, figura um tanto patética, de  que só notei entusiasmo na maneira com que relatou-nos os hábitos  dipsômanos do dia-a-dia.

                            Já adiantados na travessia para o Jardim Europa, ouviu-se, por fim, a sentença da
madrinha.
                            " Lanzetta, nessa casa nunca mais ponho os pés."                       
         
                            Voltou então o silêncio no carro, até que o chauffeur o quebraria, já na rua Turquia, para saber do diretor da Swift em que hora deveria passar para apanhá-lo no dia seguinte.

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