Criança ainda, vi levarem de casa a
meu pai. São dessas imagens que o tempo, esse maldito inimigo de tudo o que
temos de mais caro, não levará jamais enquanto vivo for.
Criança ainda, não me dera conta - e
como poderia? - que a vida pudesse pregar-nos sorte tão madrasta. Acabava de
chegar de uma viagem interrompida, eis que, como contei alhures, minha mãe me
levara para São Paulo, aonde na casa dos padrinhos iríamos esperar papai, que
vinha nos buscar para que fôssemos dar um pulo na capital, o Rio de Janeiro.
Pois vi tirarem do solar de meu avô
Romualdo, em que antes descortinara essa grande caixa negra que, fechada, estava
cercada por muitas flores, todas
brancas, muito brancas, com ramos verdes, muito verdes, tudo ajeitado no que costumara
ser a sala de visitas da casa de meus avós.
Muito criança ainda, como entenderia todo
o macabro cerimonial, que em tais ocasiões visita as famílias? Ao ritual da
Morte, porque dela desgraçadamente se tratava, nem criança como eu, nem a jovem
Mãe que pensa ter toda a vida pela frente em casamento feliz, nem o alquebrado
Avô, que jamais pensara separar-se daquela forma do Filho bem-amado e querido,
nem todo o resto da família imaginara defrontar-se com experiência tal.
Minha querida Mãe, que via a
própria vida, como ela a imaginara, desfazer-se sob o soturno esgar de sorte
madrasta, não pôde, por demasiado sofrer, acompanhar o féretro no que os
mercadores da morte chamam a última jornada.
Tantas vezes depois retornaríamos àquela visita, em que sempre me foi
difícil imaginar o meu jovem pai tão fora do devido tempo encerrado sob as
pesadas lajes de granito do túmulo avoengo.
Hoje, nos apressados tempos que
vivemos, vai saindo de moda a prática dos sepulcros familiares. Na civilização
do prêt-à-porter, reina a pressa do
intemporal. Daí a prática da incineração dos restos mortais, que muita vez, ou
se guardam em algum vaso, ou até mesmo se espalha em lugares que o antepassado,
enquanto vivo fora, amara antojar.
Sem que o soubéssemos, naqueles
tempos em que o destino, tão brutalmente, nos arrebatava a esperança de um
porvir feliz, meu avô Romualdo - que não tinha estórias a contar - vira as
Parcas arrancar-lhe, com a sua gélida indiferença, a vida preciosa do filho
bem-amado, àquele em quem confiava e também prezava, por todas as pequenas e
grandes alegrias, que ele lhe trouxera, em meio à vivência com os demais.
Já o escrevi, mas a repetição por
vezes é necessária. Quando voltamos de São Paulo, para o pouso que o seu
carinho e diligente atenção nos dedicou, sem o saber eu, ainda criança,
esperava pelo já alquebrado avô Romualdo para as caminhadas até a Praça da
Matriz. Eu não sabia, mas em me levando pela mão, vovô pensaria que estaria
mais próximo do seu filho querido, que a sorte madrasta lhe arrancara.
(
Fontes: Bernardim Ribeiro, Simões Lopes Neto)
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