Na verdade, a
chamada bala perdida, é resultado em
geral de uma determinada situação. As balas
perdidas tendem a crescer - e hoje tal fenômeno do descontrole aumenta
exponencialmente - no que se reflete um fenômeno típico do Rio de Janeiro, que
só é concebível em cenários nos quais a Polícia Militar perdeu o controle da
situação.
Muito se esperou da chamada reinserção
das favelas por intermédio das UPPs
(Unidades de Polícia Pacificadora). A primeira UPP - saudada como se fora a mensageira de um futuro de paz nas
favelas - foi a do Morro Santa Marta, cuja pacificação - dada a área menor
envolvida - não apresentara grandes problemas. Os resultados obtidos nessa
favela de menor extensão (e por conseguinte com maior capacidade de controle),
deram o necessário reforço de propaganda e de convencimento público quanto à
viabilidade de se inserir a favela dentro da cidade, se por inserção
entendermos na verdade a virtual ligação entre as duas partes da cidade do Rio
de Janeiro, na concepção de Zuenir Ventura quanto à chamada cidade partida. Se confirmado o êxito
dessa revolução urbana, desapareceria a partição entre morro e planície.
Na euforia do sucesso de Santa
Marta, os efeitos dessa revolução urbana estariam
por confirmar-se. Com a chamada Retomada
do Complexo do Alemão - quem não se recorda da ocupação dessa grande favela em
magna-operação, com direito à presença dos respectivos blindados de Marinha,
Exército e Aeronáutica ? Se não se
aproveitou o enorme dispositivo militar para
a respectiva detenção da mega fuga dos fora-da-lei (mais de trezentos bandidos
que saíram da parte alta do Alemão, e que, estranhamente, permitiriam que desaparecessem na cidade grande, lá embaixo ). Seria como, no
oba-oba da liberação do Alemão, as forças da ordem tivessem pensado que o
enorme bando deixara de apresentar
qualquer perigo... Pra que então prendê-los
? De toda maneira, a debandada permitida
mostra uma estranhíssima atitude, como se fosse coisa de somenos deixar livres
a todos os bandidos que corriam, que pulavam em caçambas de caminhonetes, etc.
etc. Sem o saber, recusando-se a prender aquela malta, a força de segurança já
indicava a possível evolução daquela 'grande vitória'.
No grande entusiasmo com as
festividades antecipadas do virtual desaparecimento da favela como centro de
bandidagem, além de não mais ficar "off-limits" da cidade grande, e
sim nela integrada, valia tudo ou quase tudo, nesse clima triunfalista (até
teleférico foi instalado no Alemão, teleférico esse que hoje não mais funciona
na prática, porque a violência voltou).
A própria Tevê Globo traria a
nova atmosfera instaurada nas favelas por intermédio da novela Salve Jorge de
Glória Pérez, estrelada por Rodrigo Lombardi (que fazia um militar) e Flávia
Alessandra (também no papel de mulher no exército). Também no elenco o saudoso Domingos Montagner,
que estrelava no grupo turco, e como super-vilã, a atriz Cláudia Raia. De acordo com a trama, o Alemão
se inseria quase como um bairro à cidade grande, com boa quantidade de
personagens, todos já sob o novo enfoque da favela integrada na realidade do
cotidiano urbano da Cidade Grande.
Não há negar que o esquema UPP
com o aparente êxito do Alemão recebera um senhor avanço. Talvez a pressa em instaurar a nova ordem terá sido um
desenvolvimento quase automático, diante do aparente espetacular sucesso do esquema introduzido pela saga do Alemão.
Desse modo, dentro de um clima de
euforia - euforia que se alimentava do alegado êxito no Alemão - crescia a
ansiedade pela implantação generalizada do modelo Santa Marta e das UPPs, que
uma vez instaladas viravam prontamente como se fossem na prática verdadeiros
passaportes para um futuro em que a favela coexistisse com a cidade grande, não
mais como uma área a não ser transitada por taxi nem visitada por turistas
vindos da cidade tradicional.
Esse cenário que seria
transposto para outras novelas da Rede Globo, ganhando assim foros de
realidade, tenderia a aumentar a pressão citadina para que as UPPs aparecessem
por toda a parte, como bandeirolas a espelhar a absorção da favela pela mesma
cidade grande.
Tal cenário começaria a ser, na
prática, contestado por eventos que se chocavam com a visão da favela
quase-ordeira e urbanizada, que os seriados da TV Globo continuavam a lançar
nas salas de visita da urbe.
Podem se considerar marcos na
lamentável descida e consequente desfazimento de uma bela e tão agradável
ilusão - o desaparecimento da favela no Rio de Janeiro como se fora em um
processo mágico - quando o movimento que poderíamos chamar Santa Marta-Alemão
começou a mostrar ocorrências e problemas que relembravam com demasiada força a
anterior imagem do cronista Zuenir Ventura,
quanto à cidade partida.
O caso Amarildo será decerto o
que os ingleses denominam de turning point, só que nesse episódio a existência
na Rocinha de uma favela violenta, incluída a possibilidade do destino da vala, que é uma versão do
desaparecimento, que abarca bandidos, tipos intermédios e gente pacífica,
dentro de um submundo que não repontava, eis que o seu desaparecimento tinha
sido um "grande exagero".
Outros golpes houve que
desmantelaram a piedosa fábula da vitória miraculosa no Alemão. As UPPs, que
pareciam o talismã da nova ordem, se viram engolfadas no retorno dos tiroteios
entre bandos rivais que se empenham, com armas, por dominar o tráfico nas
favelas. É o que ocorre no
Pavão-Pavãozinho, outra área supostamente "liberada", que de repente resolveu
voltar aos tiroteios tão conhecidos (e uma das grandes fontes das chamadas
balas perdidas), e com isso infernizou a área vizinha do túnel entre Barata
Ribeiro e Raul Pompeia, com perigo
para áreas urbanas na Sá Ferreira, para
não falar na ladeira Saint Romain, antes pitoresca, hoje praticamente off-limits.
Dessarte, a crença bastante
difundida de que as favelas poderiam ser liberadas por literais passes de
mágica, esqueceu de computar no problema a permanência eventual do tráfico, as
disputas de posse de área, e last-but not least[1], o que fazer com o modelo
da UPP - que carece, no mínimo, de uma reformulação radical.
A nossa velha propensão em
acreditar que os milagres civis são possíveis, pode ser até aceita, mas desde
que submetida a uma série de retificações. As chamadas balas perdidas têm
aumentado de forma geométrica nos últimos tempos, criando, nos bons exemplos,
muita angústia nas famílias colhidas por esse esquema infernal, e nos maus
exemplos - que infelizmente a fraqueza da PM e a ousadia crescente dos
traficantes são fautores de uma situação inaceitável para as comunidades civis,
como o dia-a-dia de subúrbio e de um morro que de novo semelha livrar-se da
possibilidade de um controle eficaz - tudo isso não pode mais ser abafado.
A partida de Mariano
Beltrame, secretário de segurança por dez anos, na verdade teve um outro tempo
real, em que a fórmula da UPP e o
esquema a ela associado perdera a sua mágica.
E a pergunta que os
cariocas não podem calar está em mapear o caminho de uma solução que nos
aproxime de mundo civilizado. Se não mais soluções miríficas tipo Alemão, nem
de intentos de transformar a favela (tipo UPP), em que mundo a autoridade vai
colocar cidade e favela ?
Pelo menos, já sabemos que
a mágica tipo Alemão não funciona.
( Fontes: Rede Globo, O Globo,
Zuenir Ventura )
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