quinta-feira, 10 de maio de 2018

Trump, um estranho no ninho


                              

        Não será aos eleitores que se deve culpar pela eleição de Mr Trump, que primo tentara lançar-se com a maluca tese do birtherism - i.e., que Barack não era americano - e mais tarde resolvera bater em outra freguesia, com a investida contra o México - para ele um ninho de cascavéis e estupradores - e para a qual tinha a solução ready-made do muro, muralha para afastar do povo americano aquela gente que vinha atrás de trabalho (enjeitado pelos conacionais de Trump). Que o raciocínio não fazia senso, tant pis, como dizem os franceses, mas não é que pegou, e que o nosso Donald Trump, de semi-desconhecido virou candidato sério (e não só do verão) e  il a balayé et fait oublier[1] todo aquele infeliz grupo que não pecava seja pela originalidade, seja pela personalidade.
          E tal candidato investiu também não contra os moinhos de vento, como herói até mais crível do que ele (dada a beleza do símbolo do grande Cervantes),  mas, não é que reprimendas à parte, ele foi em frente, ignorando toda a alta (e velha) hierarquia de o que chamam Grand Old Party (GOP).
          Restava enfrentar a candidata de longe mais preparada e equilibrada do que ele (o que, há de convir-se - e sem qualquer desdouro a ela, não é vantagem). Com a sua demagogia, no entanto, ele não submergiu, apelando para o desespero de muitos de seus apoiadores potenciais, como a turma do patético Rust belt (cinturão da ferrugem), indústrias que já desapareceram do mercado mundial - que obedece a certas regras que infelizmente independem das demagogias de Mr Trump. Venceria também no Wisconsin, um estado que já se aproveitou de uma das últimas estripulias de Roberts' court, que inventou a patranha de que o mundo e os bons costumes não fazem mais necessário impor aos estados a obediência a regras estritas no sentido dos obstáculos que os sulistas (e assemelhados) impõem às minorias desfavorecidas (como negros, latinos, idosos, etc) na sua pouca compreensível vontade de votar de uma vez naqueles candidatos democratas em que confiam, e não nos republicanos que praticam o anti-voto (impedir de todos os modos o sufrágio das minorias desfavorecidas!)
          E, last, but not least, houve também a comovente colaboração da inteligente indicação de Barack Obama para o FBI, em que preferiu, por motivos que a razão desconhece, um republicano de boa cepa.
          Concedo - de resto, como ela própria já o reconheceu - que Hillary Clinton cometeu o grande erro de pensar que o seu conforto e facilidade na comunicação seriam paramount[2] para fechar a sua mais do que discutível escolha do famoso servidor privado de computador público, trocando em miúdos, um computador de que dispusesse em casa para facilitar-lhe adiantar o (bom) trabalho no State Department. Foi contra o conselho de republicanos de boa cepa, que lhe disseram que aquela não era uma boa. Infelizmente, Hillary - como ela própria o reconhece - deveria ter aceito a boa dica, partida - vejam só! - de republicanos que acreditam nessa besteira de bipartidismo.
             Com esse palpite infeliz da candidata, ela assumiu um riquíssimo potencial de intrigas de outros (mal) intencionados membros do GOP, que viam com compreensível preocupação o potencial de Hillary no pleito. Sem querer, e sem ser Aquiles (que não teve culpa decerto pelo esquecimento da mãe Thetis), ficou com um senhor calcanhar, exposto a todo tipo de bem-intencionado ataque desonesto.
              Fazendo as exceções da regra, aí aparece o personagem que o bom Obama colocara na chefia do Federal Bureau of Investigations (FBI). Não cansarei os meus leitores com quatro Catilinárias, ou cousa parecida, mas, convenhamos, o bom Obama cometeu dois senhores erros: primo, nomeando James Comey para o FBI, e secondo, mantendo-se em comovente silêncio, enquanto esse senhor se aproveitou da ausência de Secretário da Justiça, para impedir que Jim Comey fizesse um trabalho - que levaria às lágrimas um bom picador de tourada - ao tratar Hillary de forma desrespeitosa (e totalmente fora de contexto) quanto a sua suposta falta de ordenação nos despachos do maldito servidor privado. Tudo isso - e faço de propósito uma imagem edulcorada das gentilezas de Mr Comey -  poderia até ser relevado como simples grosseria de alto servidor público que, infelizmente, tinha dificuldade em controlar seja o seu republicanismo, seja a própria falta de discernimento em referir-se a candidata séria à presidência da república dos Estados Unidos da América -, mas, in fine,  Mr Comey reserva a flechada mais irresponsável e condenável em um funcionário da Secretaria da Justiça, que deve evitar sempre atos ou comunicações que acabem prejudicando um candidato em desfavor do adversário, sobretudo às vésperas do pleito, como foi o caso. 
              A lebre que levantara Comey ao mandar aquela comunicação de duplo-sentido político de que estava sendo investigado também o computador do marido afastado de Huma Abedin, a secretária de Hillary, e que esse computador pudesser ter questões de interesse para a eleição (tradução para o eleitor antecipado: pode mostrar uma trapaça ou another misdeed of crooked Hillary, dentro da conhecida designação de quem é grande autoridade na matéria, como mostram todas as investigações a que se resume a sua terrível presidência, que caíu sobre os americanos por duas razões: (a) o incrível sistema que até hoje, contra a lógica e a história, perdura, apesar de datar do século XVIII, ao invés da votação direta para cargos executivos, que em todo o mundo civilizado perdura; e (b), a insinuação do bom Mr Comey, que a dizer verdade nem se arrepende desse seu último vedetismo (o que colheu os votantes antecipados em cheio, de que muitos foram levados a pensar de que havia algo sério contra a democrata, quando na verdade não havia nada, excluida a irresponsabilidade deste Mr Comey). Alertar ao eleitor antecipado sobre a possibilidade de que se encontrasse material comprometedor para Hillary (como insinuou na sua correspondência ao Congresso) foi algo que vai além da designação de 'irresponsável',  e não a observação cínica de Mr Comey quanto à circunstância que o afetava (a saber, nada).
            Como muitos outros no passado, ele (Mr Comey) terá assegurado a infeliz relevância momentânea, ao virar as preferências, que favoreciam claramente o triunfo de Hillary, por margem apertada, mas segura, e passaram, por esse golpe ou irresponsável ou desleal (escolha o leitor) a favorecer o pior candidato à presidência dos Estados Unidos, mesmo se computarmos um passado bem alentado.
             Infelizmente, dado o anacronismo do sistema - Hillary ganhou no voto popular, como tinha igualmente vencido no princípio do século Albert Gore, e tal infelizmente que vale muito além fronteiras, nos demais países democráticos do mundo, neste caso vale quase nada  (daí a patética mentira de Donald Trump de que votantes não-autorizados, i.e. estrangeiros ilegais teriam dado essa maioria) que é legítima, mas que nada vale nos EUA.
               Tutto sommato, como dizem os italianos, nada dessa vantagem infelizmente vale um sufrágio sequer. Quem se conforma com esse tipo distorcido de sistema eleitoral, já totalmente perempto na prática pela história e pelo desenvolvimento tecnológico, fica difícil de entender para um certo partido (que conta com a realidade dos eleitores), mas não para o outro, que está por trás das mágicas que a Roberts Court tão pressurosa e cinicamente pôs à disposição do GOP, porque é o GOP nesse período que trabalha contra a apuração (ao senti-la contrária às maiorias dos despossuídos que tão  bem veiculou o bar-man do grupo reunido pelo candidato perdedor, para o segundo mandato de Obama, e que traria mais votos contra o republicano Mitt Romney e a favor do democrata.  
                 Hillary Clinton em entrevista ao grande reporter e comentarista do New Yorker mostrou a raiva e a perplexidade diante de uma eleição em que tudo fazia esperar que seria a vencedora.  No seu livro "What Happened" (O que aconteceu) já examina o incrível resultado com o distacco de uma candidata séria (nos dois sentidos), em que busca entender e fazer entender uma das eleições mais estonteantes, no sentido em que por uma conjunção infeliz (para ela), diversos inimigos, muitos deles que na verdade lhe retratam o valor, através de medidas negativas, criminosas e de agressivo partidarismo.
                   Nunca um candidato como o falastrão Donald John Trump, tão medíocre na visão política e nos respectivos programas, de comportamento tão inquietante e amiúde sexualmente repelente terá sido a causa de uma conjunção infeliz de fatores agressivamente negativos contra a sua adversária. O paradoxo desse comovente apoio de um presidente russo, rancoroso por conta da habilidade de Hillary como Secretária de Estado, expondo o que é a "democracia russa", construída com métodos gangsterísticos e que por ameaçar-lhe (ainda não muito) o domínio com mão de ferro - mais uma vez melancolicamente corroborado na sua capacidade de organizar o regime autoritário, que não hesita tanto na eliminação física, quanto na perseguição de Boris Navalny, que é popular e por isso não pôde pelas kafkianas regras da democracia de Putin sequer candidatar-se.  Mas esse détour não deve fazer que percamos de vista as razões objetivas da "derrota" de Hillary, na feroz, rancorosa e impiedosa participação russa contra a sua candidatura.
                    Se disso, decerto, também se ocupa o Procurador Especial Robert Mueller III - e posso estar errado, mas nunca um procurador estatal terá encontrado material tão farto nas entrevistas, nas detenções e consequentes interrogatórios, na série de falcatruas de Trump  e seus underlings, além do peso enorme da deslavada intervenção russa no processo eleitoral americano, com ruptura do código utilizado pelo Comitê Democrata, e mesmo até invasão física de suas instalações.
                    O ataque lançado por Vladimir Putin e sua grei contra a candidata Hillary é claramente empurrado pelo ódio do presidente imperial russo contra a prócer democrata, cuja projeção, habilidade e coragem o terão preocupado sobremaneira. Todo o empenho que demonstrou para defender os fracos atributos de seu subserviente candidato americano, a quem como um relatório de especialista inglês adumbra a possibilidade de não excluir-se que entre as motivações para a obediência de Trump está a possibilidade demasiado provável que os seus conhecidos ímpetos lúbricos tenham sido gravados pelo serviço secreto russo, dentro da linha de instrumentalizar a chantagem como meio de domínio de agentes políticos. Desse modo, não me parece nada absurdo sugerir que toda essa operação clandestina e semiclandestina, com contatos até de advogada russa que veio a New York para passar-lhe elementos que acreditava pudessem ser negativos para a candidata democrata surgem como de dificílima contestação.
                   Mas com os seus hábitos imperiais, não terá sido dificil para gospodin Vladimir V. Putin manter sob estrito controle o "amigo" ricaço americano. Não desdenhou, também, a utilização da internet com os falsos apoiadores, as trolls, as mentiras que transitaram pelo Facebook e que hoje tanto incomodam à sua direção.
                   Além disso, em movimentos de pinças, imitando os ataques da Wehrmacht que na primeira parte da guerra germano-russa levaria a coalizão alemã até as cercanias de Moscou, e depois se estenderia à parte asiática do continente russo, até acabar na derrota de Stalingrado, os serviços de Putin se valeriam,  em termos de propaganda agressiva contrária  da ajuda de Wikileaks, que da chancelaria da embaixada equatoriana em Londres, na sua condição de asilado, manipulou o seu artífice, Julian Assange, igualmente virulento opositor de Hillary,  e que parece bastante improvável que este seu movimento, tentando disponibilizar tudo o que seu ver seria potencialmente negativo para a candidata.                        
                       Creio desnecessário acrescentar mais elementos nesse quadro da ofensiva russa contra a candidata democrata.  Não há poucas iniciativas e ataques contra Hillary Clinton, e é assaz difícil encontrar algo em que os personagens acima, com o devido realce ao presidente russo,  não tenham de algum modo participação.
                         Além das investigações que já foram realizadas pelos serviços americanos que são competentes na matéria, depois da escolha do Conselheiro Especial Robert H. Mueller III, há também o trabalho de inteligência realizado por Christopher Steele. Esse especialista inglês, a que se procurou desvalorizar e mesmo desmoralizar, se tem mostrado muito acurado e preciso nas suas informações sobre Donald Trump e a Rússia.
                            No entanto, Steele, pela qualidade de seu trabalho, e a própria discrição, que é a consequência natural de sua formação como agente britânico de inteligência, é outra incômoda pedra no caminho do Presidente Donald  Trump.  Poder-se-ía nesse aspecto que a característica por assim clássica dentro do trabalho de inteligência representa a um tempo a catálise homogênea de um paciente e sério trabalho de coleta de informações sobre o personagem Trump. E é este duplo aspecto do trabalho profissional desse espião inglês no modelo clássico que constitui a força de sua exposição profissional e temática da questão,  e, por consequente desperta forças antagônicas que buscam desesperadamente destruir-lhe a sua peça clássica de exposição, em uma homenagem de mauvaise-gré  à sua participação sobre Trump e a Rússia, que é o seu específico papel de inteligência  nessa matéria.
                            O Presidente Donald Trump tem o poder formal de exonerar o Conselheiro Especial Robert Mueller the third.  Mas tal poder tende a ser à la fin de pouca valia, como a tentativa análoga de Richard M. Nixon o provaria no século passado. Dentro da sistemática da Administração americana, o procurador  Robert Mueller deveria ter sido nomeado por Jeff Sessions, o Attorney-General (procurador geral), mas este senador preferiu eximir-se do encargo por suas intrincadas relações pessoais com o presidente.Assim, em iniciativa que irritou sobremaneira a Trump, Sessions passou a seu substituto legal, o Deputy  Attorney General, i.e., Vice Procurador-Geral  Rod Rosenstein, o encargo de nomear a Robert Mueller III.  A iniciativa não foi do agrado de Trump, tanto pela circunstância de passar a ter alguém na Secretaria de Justiça a investigá-lo, mas sobretudo pelos problemas levantados potencialmente por esse Promotor Especial, sobre quem, ironicamente, Trump tem o poder de exonerar, mas como já foi dito acima é uma medida que, se adotada, se reverteria contra o Presidente, como foi no caso antecedente da demissão pelo Presidente Richard Nixon de seu Promotor Especial, o que tampouco valeria  para o então presidente, que já tinha o destino político.  Em assim vendo a sua situação, politicamente perdida, Nixon optou pela renúncia e a consequente admissão de culpa para a posteridade.
                            Ainda falta muito para determinar qual será o destino do atual 45º presidente. Mas seria na verdade quase insano acreditar em um final normal deste seu mandato.  Como se diz na minha terra, há gente demais na sua cola, e ele, a par disso, cria condições políticas para a sua queda, através de seu conceito de mau presidente e de fautor tanto de escândalos, quanto erros políticos graves, que se prendendo na própria cola, anunciam diuturnamente a cercania de uma eventual demissão.
                              Não se deve esquecer, por fim, que o Partido de Lincoln tem presumivelmente todo interesse em desembaraçar-se do seu atual chefe, que não lhe pressagia uma boa eleição intermediária próxima.  Falar de eleição favorável nessa conjuntura há de parecer, s.m.j., garrafal ausência de qualquer tino político, vizinha, portanto, ao deboche. E nenhum partido estima ter como chefe um fautor de desastres eleitorais, com a eventual perda da maioria como muito provável na Câmara de Representantes, e talvez, quem sabe,  no Senado.
(Fontes: What Happened, de Hillary Clinton; Don Quijote de la Mancha,de Miguel de Cervantes; Homero; Noel Rosa; David Remnick; Karen Dawisha; Franz Kafka; Oswald Spengler )



[1] francês: varreu e fez esquecer   
[2] preponderante

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