Segundo reporta
o Estado de S.Paulo, um dos argumentos usados por ministros do Supremo para defender que a Polícia
Federal faça delação premiada é que... a medida enfraquece o poder do
Ministério Público, o que semelha no mínimo questionável.
Esse raciocínio
me parece para lá de dúbio, porque não se trata de reforçar ou debilitar esta
ou aquela corporação. O Estado - e não me estou referindo obviamente ao jornal
- não deve ter outra preferência do que aquela da capacitação relativa da
instituição a exercer esta ou aquela tarefa.
O vergonhoso
inquérito a que a P.F. submeteu o reitor Luiz Carlos Cancellier, da
Universidade Federal de Santa Catarina, supostamente culpado de integrar
"esquema criminoso" que teria desviado "oitenta milhões de
reais", teve resultado sombrio, pois levou um homem honesto ao suicídio.
Como assinala a
reportagem de capa da VEJA desta semana, por causa de acusação irresponsável,
na operação da PF os agentes prenderam sete pessoas, entre as quais o professor
Luiz Cancellier de Olivo, então com
59 anos, reitor da Universidade.
Cancellier foi então algemado, agrilhoado pelos pés e submetido à
revista íntima. De uniforme cor de
laranja, permanece trinta horas detido, parte delas em presídio de segurança
máxima, e, ao sair, fica proibido de pisar no campus da universidade, até ser liberado por ordem judicial.
Tão traumática
experiência, de um sádico tratamento de choque, cuja premissa é a alegada culpa
escrachada do suspeito, a que se intenta não só desmoralizar, mas também
aniquilar no mais fundo recesso do próprio auto-respeito, tal inominável
tratamento possui turbadoras características que recordam as penalidades
impostas pelo nazi-fascismo. Não surpreende, portanto, que esse violento, boçal
tratamento de choque deixe em Cancellier indelével cicatriz, que é tanto mais
sensível pela estúpida, arbitrária e fundamente injusta intrínseca violência
desta atitude cujas raízes decerto se encontram nas mais façanhudas ditaduras.
Com essa funda e de todo inesperada
brutal violência, surpreenderá acaso que um homem inocente e íntegro,
profissional conceituado, merecedor das atenções a que fazem jus os homens de bem, e que, por certo, em um
cenário de justiça e de respeito, tinha todos os motivos para sentir-se
intelectual e profissionalmente realizado, como se há de imaginar que um justo
venha a receber um tratamento que se dispensa aos réprobos e criminosos?
Poderão aqueles
surpreender-se diante do tratamento de choque que encenaram, dezoito dias depois da humilhação sofrida - e
quanto mais injusta ela é, não só na acusação, mas também na crueldade de um
ritual em que a vítima sequer possui o direito da presunção de inocência. Como
se estivera, de repente, nas mãos de
um boçal delegado interiorano, não surpreende decerto que as defesas naturais
do ser humano tenham caído e de forma repentina, tal o inominável, estúpido e
de inacreditável injustiça ritual acusatório, que na sua intrínseca, medieval
mesmo violência, se abate sobre ele, e lhe impõe toda sorte de humilhação, como
se triturar o ego de um homem, e denegar-lhe a qualidade do próprio caráter
constituam as regras para a destruição do amor-próprio, do auto-respeito do
Magnífico Reitor.
Diante do tratamento que lhe foi
imposto, e com as suas bárbaras características, que começam pela falta de
qualquer atenção para com a pessoa acusada, a quem se dispensa um ritual que
visa a triturar-lhe o próprio ego, eis
que as suas premissas constituem um espelho às avessas.
Será preciso vestir-se de muito
cinismo se se ousa encenar esse procedimento, que não espantaria a Dante
Alighieri, se ele, pela súbita intentada destruição de seu conceito
profissional e da própria auto-dignidade, leva Cancellier
a tal gesto extremo.
Na campa do
cemitério de Florianópolis, ali encontraremos o granito que mostra aos pósteros
quem cometeu a mais corajosa afirmação de auto-respeito com que defenderá para
sempre a lisura, a inteligência e a grande qualidade do próprio trabalho. E será com a coragem extrema de quem
não hesita sacrificar o próprio ser aos vis intentos que buscaram diminuí-lo e
escarnecê-lo, ele se suicida, como homem e profissional digno que sempre foi e
será, lançando-se do 7º andar de um shopping center em Florianópolis.
Passados sete
meses da tragédia que desabou sobre um inocente, a revista VEJA teve acesso às
seis mil páginas do inquérito e as oitocentas do relatório final da
investigação.
Como VEJA
enfatiza "é uma leitura perturbadora pelo excesso de insinuações e escassez de
provas".
Do pobre Reitor,
que, ao cabo de tudo, surge como homem honesto que sempre foi - há de convir-se
que nesse Brasil de hoje Cancellier pagou preço demasiado alto para ser
submetido à ânsia de corporações, que partem do pressuposto de que alguém é
culpado e condenado antes mesmo de ter direito a exame digno, imparcial e
equilibrado, das acusações e do próprio conceito funcional. Da ânsia fascista
que logra destruir a autoestima de um
homem profissionalmente respeitado, e que o joga ao mais fundo do desespero -
que é aquele de ser vilipendiado por eventual conduta e supostos crimes de que
hoje é reconhecido que será para sempre
inocente - restam apenas as marcas macabras da própria lápide no cemitério
Parque Jardim da Paz, em Florianópolis.
Aonde se
acobertam os canalhas que, por motivos decerto inconfessáveis, lograram armar
um processo mais próprio da Inquisição - em que ali, os verdadeiros infelizes
já adentravam as lúgubres salas,
torturados e com a cabeça a prêmio?
Todo esse
procedimento autoritário - em que alguém já entra culpado nas salas de
interrogatório - está resumido na reportagem da VEJA. A pressa e a ambição de colher mais um
culpado já na leitura das páginas do semanário perturba ao leitor. "O
relatório dispara uma fuzilaria verbal contra o Reitor. Afirma que
"Cancellier detinha pleno conhecimento sobre o funcionamento e a dinâmica das fundações e de todas as
irregularidades." Assegura, ainda, que o reitor "agiu decisivamente
em condutas impugnadas nesta investigação" e participa de uma "orcrim"
(abreviação policiesca para organização criminosa).
"O
aspecto alarmante é que as afirmações do relatório não se baseiam em provas
conclusivas. Não há um depoimento peremptório, um documento inequívoco, uma
prova cabal. O texto limita-se a especular sobre a intenção de troca de
funcionários e sobre o conteúdo real de conversas no WhatsApp, a apontar a estranheza de algumas coincidências, e chega
até a fazer referências a fofocas e "comentários". O Ministério Público Federal, num sinal de que
não considera o trabalho acabado, já pediu mais 180 dias para examiná-lo.
"Ao
final, os investigadores pedem o indiciamento de 23 pessoas, com base na suposta ocorrência contumaz de pequenos golpes praticados por
funcionários e beneficiários de bolsas do governo.( ...) Também sobre os 23 listados.os elementos e
indícios são frágeis. Ficam na esfera das possibilidades, desconfianças,
suspeitas vagas. A leitura das 6000 páginas do inquérito, mas principalmente
das oitocentas páginas do relatório final, passa a impressão de que a PF,
acuada pela suspeita de que agiu de modo arbitrário ao pedir a prisão do
reitor, se empenhou em superdimensionar as acusações, dando-lhes cores mais
intensas do que a prudência recomendaria."
A
reportagem da VEJA continua, mas o leitor fica com a impressão de que há uma
perda trágica de tempo, na medida em que crescem as suspeitas de que o Reitor
Cancellier foi a vítima da vez, perseguido
por ambições inconfessáveis e por ímpetos que lembram outros tempos,
cruéis decerto e demasiado apressados para chegar à suposta verdade, dentro da
mentalidade de que o réu de um processo desse gênero, inquisitorial e
apressado, é o culpado, que, por esta ou aquela razão, já está condenado de
antemão.
Essa gente, que se prefere não
definir, não contava com a coragem extrema da vítima da vez.
Mas além de não confinar
o pobre Cancellier àquela lápide, cumpre
que nesse Brasil se reconheça um homem honesto e digno, que não hesitou em
realizar o ato extremo, na falta de outro para convencer a horda de que se
tratava de uma pessoa respeitada na sua profissão, e que não trepidara em pôr a
própria existência como prova inconfutável[1].
( Fontes: Veja, Dante Alighieri (Commedia) )
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