Os tiranos tinham medo de Liu Xiaobo. Ainda jovem, ele participa
do movimento de Tiananmen. Recordo-me de haver visitado, em missão do
Governo brasileiro, a República Popular da China. O chefe da delegação era o
próprio Presidente José Sarney.
Além das sessões com a delegação
chinesa, Deng Tsiao-ping, o então
grande líder compareceu à reunião para a delegação brasileira, onde nos foi
servido aquele chá verde que os chineses tanto apreciam. Do grande salão se
deparava, ao lado, a Praça da Paz Celestial (Tiananmen), onde apenas começavam
as reuniões de manifestantes que desembocariam na grande matança da repressão
ao movimento estudantil.
Recordo-me que, entre as visitas que
fizemos a autoridades chinesas, estava o Primeiro-Ministro
Zhao Ziyang. Àquele tempo me dei conta que a postura de Zhao já não
indicava que lhe soprassem os ventos a favor. Tinha sido um quadro brilhante, chegando
aos cargos de Secretário-Geral do Partido e, em seguida, Primeiro
Ministro. Mas por viagem azíaga à Coréia do Norte, ao voltar já dera com a conspirata da facção conservadora, liderada
por Li Peng, que convencera o Supremo
Líder Deng a assinar comunicado ofensivo e provocatorio ao movimento
estudantil, reunido na Praça Tiananmen, radicalizando situação que Zhao vinha
procurando manter sob controle, fazendo contatos assaz positivos com os líderes
do movimento da Praça Tiananmen.
Deng é, em seguida, persuadido a decretar
a Lei Marcial para lidar com o movimento de Tiananmen. Zhao faz saber que não
concorda, e diz que terá muitas dificuldades em implantá-la. Na era de Deng,
Zhao pelo próprio valor - e, por isso, passara a ser quadro partidário com
grande influência, inclusive na implantação da abertura comercial e industrial
desejada por Deng - e nesse contexto tivera uma progressão bastante rápida. Passou
Zhao, pela vontade de Deng, por vários postos de importância - na
morte de Yu Yaobang, Secretário-Geral do PCC - lhe assume o posto, do qual
passa em seguida para o de Primeiro Ministro, tudo isso sob a liderança do
homem forte do Partido Comunista Chinês.
Mas todo esse promissor futuro se
dissipa pela radicalização - incitada por Li Peng, e implantada por Deng - com
o afastamento, na prática, de Zhao, que, de um dia para outro perde o próprio futuro, mas ganha o seu lugar na História, tanto que quando faleceu (17 de
janeiro de 2005) - ainda em prisão domiciliar - o seu passamento foi mantido
sob segredo pelos sucessores de Deng, que ainda lhe temiam a popularidade e,
por conseguinte, a influência junto ao Povo chinês.
Liu Xiaobo entra na História
quando propõe uma constituição para a China. É uma tentativa ainda em esboço, e
ele tem nesse trabalho o apoio de sua
esposa Liu Xia. Estamos em 2008, e é o governo de Hu Jintao (2002 -2012).
O aparato policial e jurídico da
RPC entra em funcionamento, e julga Liu como se ele fora responsável de um ato
subversivo. Ele é julgado, considerado culpado de crime contra a segurança do
Estado chinês, e condenado a onze anos de prisão.
A sua esposa, Liu Xia, é mantida na
prática em prisão domiciliar.
O intúito de Liu Xiaobo - na
verdade, ele esboçara em grandes traços uma organização constitucional para o
Estado chinês, mas a iniciativa é muito mal-vista pelos altos funcionários - em
ditadura estruturada à maneira de Estado policial, com o PCC, na prática, dando
através de sua liderança as diretivas e competências dos diferentes
departamentos e ministérios.
A
situação do dissidente Liu só piora com a inopinada decisão do comitê Nobel -
único dentro da herança de Alfred Nobel afeto ao Reino da Noruega - de
conceder-lhe o galardão do Prêmio Nobel da Paz daquele ano, dada a relevância
que atribuíu ao trabalho de Liu Xiaobo.
Com a "agravante" da
transformação de Liu Xiaobo em personagem internacional - um Prêmio Nobel da
Paz é uma distinção rara. O Brasil, por exemplo, semelha para muitos uma
mediocridade. Edward W.Saïd, o falecido sociólogo palestino-americano, considerava
o Brasil, como a Nigéria, uma nação desimportante[1].
E vejam só, quando no tempo em que os militares davam as cartas no Brasil, ao
saber a cúpula da intenção do Comitê Nobel de atribuir o Prêmio Nobel a Dom
Helder Câmara, encarregou o representante diplomático - creio que Encarregado
de Negócios - a empenhar-se para dissuadir o comitê norueguês de obter essa
concessão ao Brasil: negar, na prática, a Dom Helder tão merecido galardão.
Embora quem tenha logrado tal não faça segredo desse cometimento, prefiro não
declinar-lhe o nome, porque me conto entre os que julgariam grande honra para o
Brasil ter Dom Hélder ganho o laurel.
Por motivos similares, Pérez Esquivel ganhou o Nobel da Paz para a Argentina, e
os generais argentinos ou não quiseram, ou não puderam evitar que Adolfo Pérez Esquivel
lograsse receber em 1980 o prêmio.
Dom
Hélder, cujo merecido processo de beatificação pelo dicastério competente da
Cúria Romana se encontra em curso, por determinação de nosso Papa Francisco,
deverá, estou certo, ganhar em breve o caminho dos altares. Para quem teve a
fortuna de conhecê-lo pessoalmente, bastava privar com ele, além de ter
presente a sua grande e benemérita obra, notadamente na Arquidiocese de Olinda
e Recife, para que nos impressionasse sobremaneira o seu trabalho apostólico,
que o seu triste sucessor, Dom José Cardoso Sobrinho, não lograria desfazer ou
desmerecer.
Mas voltemos ao caminho difícil que
lhe reservou o Estado chinês por haver merecido a honrosa atenção do comitê do
Nobel, que está afeto ao Reino da Noruega.
Àquele tempo, presidiam a República Popular da China, o chamado regime
da presidência burocrática, integrado por Hu Jintao (2002-2012) e por seu
Primeiro Ministro Wen Jiabao. O regime chinês, depois da liderança carismática de
Deng Xiaoping, morto em 19 de fevereiro de 1997, se estruturaria, afinal, em
tipo de regime de transição, em que o poder, após curtas presidências, passaria
a Hu, como já indicado.
O tratamento dado por Beijing a
Liu Xiaobo se caracterizaria por mescla de crueldade e mesquinharia. Condenado
a onze de prisão, seria prontamente transferido para enxovia interiorana, ao
norte da RPC - enquanto à esposa Liu Xia caberia, na prática, o cárcere
privado, eis que não tinha sequer licença para sair de casa.
A RPC, cujo poder tem crescido
bastante - como o sentem especialmente os respectivos vizinhos, inclusive e
sobretudo os colindâneos com os chamados mares do Sul da China, a que Beijing,
quando lhe interessa, busca intimidar
por todos os modos, sobretudo no que tange à Lei do Mar e a seus supostos
direitos de exploração e explotação - pensou que poderia intimidar a pequena
Noruega, para dissuadi-la eventualmente da concessão do Prêmio Nobel da Paz.
Não creio que seja o caso de descer a
minúcias, mas as tentativas de intimidação ao governo de Oslo não faltaram. O
único paragão que encontrar-se possa na graduada escala da grande potência que
busca confrontar o pequeno estado norueguês estaria na reação de Adolf Hitler
quando a Noruega concedeu o Prêmio Nobel a Carl von Ossietsky, em 1935. Esse jornalista e escritor católico não pôde
recolher o prêmio porque o ditador nazista se recusou a libertá-lo do campo de
concentração onde se achava. Morreria de tuberculose, e apesar de sua condição
de pacifista não mereceria sequer do Führer a atenção de consigná-lo a um
hospital.
Na época, ainda era desconhecida
a extensão da perversidade do ditador nazista. Hitler se enfureceu com a
concessão do prêmio ao jornalista católico, como se tal fôra afronta pessoal...
Como se vê, os regimes
ditatoriais sóem tentar repudiar e desmerecer a concessão do Prêmio Nobel da
Paz. Mesmo em países pequenos, como é o caso da Guatemala, a concessão do Prêmio
Nobel a Rigoberta Menchú, lider indígena, que tanto se batera pelo respeito à
sua etnia (assim como a de várias outras assemelhadas, nesse estado indígena da
Guatemala) despertou naquele importante país da América Central a reação
despropositada das classes dominantes, "revoltadas" com a concessão
do Prêmio Nobel da Paz a uma representante indígena. Chegaram até mesmo a
veicular candidaturas avulsas de supostas ativistas de origem européia e
nacionalidade guatemalteca, mantendo-as de certa maneira artificial, com que
pensavam dar a impressão, veiculada por setores da imprensa, de que tais
senhoras vinculadas a atividades caritativas sem qualquer especial relevo
reunissem alguma possibilidade de receber a laurea...
Mas deixemos de lado as mesquinhas
inquietudes de sociedades que confundem chás de beneficência com a atividade,
muita vez com perigo para a pessoa empenhada, dadas as características sociais
de um passado similar ao feudal. A reação de muitos na sociedade da Guatemala
ao merecido prêmio dado à Rigoberta não representou surpresa para quem tivesse
um conhecimento menos superficial das características de certos extratos,
demasiado embalados em um convívio arcaico, a que a outorga do Nobel
representou um saudável choque de realidade.
O atual estado da República
Popular da China trai pela reação ao que a classe dominante (pois ela continua
a existir mesmo na utopia comunista - chinesa - que controla o Estado através
da censura e das prisões) considera ameaça inaceitável: a concessão ao pobre
ativista Liu Xiaobo do Prêmio Nobel da Paz, que é visto por essa gente -
Hitler, Hu Jintao e Xi Jinping - como se fora verdadeiro opróbrio nacional.
Não tenho a menor dúvida que
tal também tenha sido a reação de Deng Xiaoping. No entanto, Liu Xiaobo quiçá participara - e pagou por isso - como
militante nas demonstrações da Praça Tiananmen, tendo sofrido alguma pena menor
por ter participado nas diversas
manifestações que assinalam a ocupação da Praça pela juventude chinesa e
por muitos ativistas e simpatizantes em faixas etárias mais altas.
No período da liderança
burocrática de Hu Jintao, começou a se tornar possível uma atitude menos
dramática quanto ao ocorrido na praça da Paz Celestial.
Infelizmente, esses indícios de
desdramatização se terão esvanecido no iniciante período de Xi Jinping, que
assumiu o poder com muito mais força do que os antecessores. A par disso, Xi tem muita admiração por Mao Zedong (1893 -
1976). No complexo quadro chinês, que Xi possa ser admirador maoista não é um
bom sinal quanto a perspectivas de uma gradual flexibilização do regime, como
se verificou, v.g., com o Premier Zhao Ziyang (1919 -2005). A partir de Junho
de 1989, reunião do Politburo o despoja de todas as atividades e cargos
oficiais. Inicia-se então o longo período da prisão domiciliar, que finda com a
sua morte em 17 de janeiro de 2005.
Xi Jinping não é mais do
modelo burocrático como o foi seu
antecessor Hu Jintao, e outros chefes de estado, após o desaparecimento de Deng
Xiaoping, em 1997. Xi domina a atual burocracia chinesa, em especial a do PCC,
de modo bastante mais acentuado de que os que lhe antecederam nesse período de
transição. Como já aludi, a sua admiração por Mao Zedong em nada favorece uma
disposição menos rígida.
De qualquer forma, é uma
mentalidade repressiva que nos mostra o quão perdeu a sociedade chinesa com a
partida antecipada do poder de Zhao Ziyang. Mesmo os seus antecessores no mando
- nesse período a partir da morte de Deng Xiaoping (19 de fevereiro de 1997)
até a assunção de Xi Jinping, em 15 de março de 2013.
A partir da assunção de
Xi se afirma uma liderança mais dinâmica e abrangente, posto que tal ênfase se
reflita bastante para um viés mais repressivo. A característica anterior do
burocratismo desaparece, e um líder mais ativo se mostra claramente. Mas tal
viés se tem voltado mais para o aspecto do controle e da repressão, de que são
exemplos o menor espaço dado a atividades que possam ter a ver com alguma maior
abertura. Portanto, a força da presidência de Xi Jinping vai na direção tendente
à maiores intentos de controle da sociedade.
Se alguém admira Mao Zedong, a despeito
do caráter destrutivo de sua liderança, da fome que imperou em parte de seu
governo por iniciativas irresponsáveis como a dos guardas vermelhos e da grande
fome no campo e nas cidades, por outros programas demenciais de Mao, caberá
reconhecer que esse admirador pode ser um perigo para a nova China.
Por isso tudo, não
surpreende, por mais lamentável e mesmo abominável que seja, o tratamento dado
a Liu Xiaobo sobremodo na parte final da sua existência. Só pode merecer
condenação e mesmo desprezo a maneira sórdida e mesquinha,com que se denegou ao
doente terminal (câncer no figado) Liu Xiaobo até mesmo a eventualidade de seu
transporte para um nosocômio em que ele recebesse o melhor tratamento acessível
ao cidadão chinês nesse paraíso socialista.
O que se viu e se tem
ora colhido são indicações de um poder cruel e que está em faixa similar àquela
do nazi-fascismo, quando não só se denegou que Liu fosse transferido para um
hospital digno da atual pujança do Estado chinês, ao invés de ser
ignominiosamente retido em uma enfermaria um paciente terminal de câncer
hepático.
A postura de Liu mostra a firmeza de seu
caráter, e a baixeza de seus carcereiros. Há rumores quanto a um tratamento
ainda mais desprezível, que se acerque de práticas onde o homicídio já apareça
como uma possibilidade concreta.
Perdeu o regime chinês uma
grande oportunidade de diferençar-se do carrasco nazista. Pelos modos e
atitudes, nada foi feito para atender à enfermidade de que padecia um preso por
crime de consciência, uma das formas mais indicativas de quão retrógrado,
repugnante e, portanto, repulsivo, é um regime que em nada se distingue das
mais sórdidas repressões, que lembram um panorama hobbesiano.
Por vezes, os
grandes desse mundo não aquilatam a extensão do mal que podem causar a si
próprios.
Seria interessante
que esses senhores todo-poderosos venham a ler a biografia da última imperatriz
chinesa Ci Xi (1835 - 1908). Apesar
das enormes dificuldades do período, descritas com detalhes e isenção pela
autora Jung Chang (foi a fase do imperialismo ocidental contra a China, com
todas as dificuldades e baixarias sofridas), a imperatriz viúva legou à sua
posteridade uma democracia.
Contrista e por
vezes revolta, que o exemplo dado por uma grande mulher que exerceu o poder por
cerca de trinta e cinco anos, em um período caracterizado pelo imperialismo
mais desavergonhado de que alacremente participaram as potências ocidentais e
até mesmo o recentemente armado Império do Japão, ela o tenha logrado superar,
em meio às cicatrizes e as amputações (que só o tempo iria ajudar a vencer), e
deixado um nome como governante que ainda não encontra paragão.
Espanta que essa
grande senhora que tanto sofreu com a violência, a desonestidade e a cupidez do
Ocidente, tenha deixado uma constituição em que estabelecia a livre transmissão
de pensamento e idéias.
Que o célebre
Império do Meio continue hoje a privilegiar atitudes e comportamento como
aqueles que nortearam o ignóbil, ignavo e sórdido tratamento dado ao idealista
e homem probo que foi Liu Xiaobo está abaixo de qualquer
possibilidade de perdão ou eventual relativização. Passados tantos anos, mais do
que surpreender, revolta e, mesmo, enraivece que a democracia chinesa,
instituída pela Imperatriz Ci Xi, seja hoje apenas um dado surpreendente em uma longa fileira de
atos e comportamentos que merecem mais do que condenação, revolta e menosprezo.
De que servem os séculos
e os milênios, se ao invés de progredir, assistimos, em meio a cinismo e
desalento, a regressão do homo dito sapiens ao cenário de Thomas Hobbes?
( Fontes: Empress Dowager Cixi, de Jung Chang (em português A Imperatriz de
Ferro); Prisoner of the State, trad. e editado por Bao Pu,. Renee Chiang e Adi Ignatius; The New York Review of Books;
The
New Yorker; Thomas Hobbes ).
[1]
Edward Said o qualificara, na verdade, de "non-descript" country, tal
como a Nigéria.Considerar o Brasil como um país sem características distintivas
(Webster Dictionary) depõe mais contra o autor desse despropósito, tal o
absurdo da qualificação.
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