sexta-feira, 14 de julho de 2017

Liu Xiaobo ou a Chama da Liberdade

                     
         Os tiranos tinham medo de Liu Xiaobo. Ainda jovem, ele participa do movimento de Tiananmen.  Recordo-me de haver visitado, em missão do Governo brasileiro, a República Popular da China. O chefe da delegação era o próprio Presidente José Sarney.
          Além das sessões com a delegação chinesa, Deng Tsiao-ping, o então grande líder compareceu à reunião para a delegação brasileira, onde nos foi servido aquele chá verde que os chineses tanto apreciam. Do grande salão se deparava, ao lado, a Praça da Paz Celestial (Tiananmen), onde apenas começavam as reuniões de manifestantes que desembocariam na grande matança da repressão ao movimento estudantil.
          Recordo-me que, entre as visitas que fizemos a autoridades chinesas, estava o Primeiro-Ministro Zhao Ziyang. Àquele tempo me dei conta que a postura de Zhao já não indicava que lhe soprassem os ventos a favor. Tinha sido um quadro brilhante, chegando aos cargos de Secretário-Geral do Partido e, em seguida, Primeiro Ministro. Mas por viagem azíaga à Coréia do Norte, ao voltar já dera com a conspirata da facção conservadora, liderada por Li Peng, que convencera o Supremo Líder Deng a assinar comunicado ofensivo e provocatorio ao movimento estudantil, reunido na Praça Tiananmen, radicalizando situação que Zhao vinha procurando manter sob controle, fazendo contatos assaz positivos com os líderes do movimento da Praça Tiananmen.
           Deng é, em seguida, persuadido a decretar a Lei Marcial para lidar com o movimento de Tiananmen. Zhao faz saber que não concorda, e diz que terá muitas dificuldades em implantá-la. Na era de Deng, Zhao pelo próprio valor - e, por isso, passara a ser quadro partidário com grande influência, inclusive na implantação da abertura comercial e industrial desejada por Deng - e nesse contexto tivera uma progressão bastante rápida. Passou Zhao,  pela vontade de Deng, por vários postos de importância - na morte de Yu Yaobang, Secretário-Geral do PCC - lhe assume o posto, do qual passa em seguida para o de Primeiro Ministro, tudo isso sob a liderança do homem forte do Partido Comunista Chinês.

              Mas todo esse promissor futuro se dissipa pela radicalização - incitada por Li Peng, e implantada por Deng - com o afastamento, na prática, de Zhao, que, de um dia para outro perde o próprio futuro, mas ganha o seu lugar na História, tanto que quando faleceu (17 de janeiro de 2005) - ainda em prisão domiciliar - o seu passamento foi mantido sob segredo pelos sucessores de Deng, que ainda lhe temiam a popularidade e, por conseguinte, a influência junto ao Povo chinês.
              Liu Xiaobo entra na História quando propõe uma constituição para a China. É uma tentativa ainda em esboço, e ele tem nesse trabalho  o apoio de sua esposa Liu Xia. Estamos em 2008, e é o governo de Hu Jintao (2002 -2012).
             O aparato policial e jurídico da RPC entra em funcionamento, e julga Liu como se ele fora responsável de um ato subversivo. Ele é julgado, considerado culpado de crime contra a segurança do Estado chinês, e condenado a onze anos de prisão.
             A sua esposa, Liu Xia, é mantida na prática em prisão domiciliar.
         O intúito de Liu Xiaobo - na verdade, ele esboçara em grandes traços uma organização constitucional para o Estado chinês, mas a iniciativa é muito mal-vista pelos altos funcionários - em ditadura estruturada à maneira de Estado policial, com o PCC, na prática, dando através de sua liderança as diretivas e competências dos diferentes departamentos e ministérios.
             A situação do dissidente Liu só piora com a inopinada decisão do comitê Nobel - único dentro da herança de Alfred Nobel afeto ao Reino da Noruega - de conceder-lhe o galardão do Prêmio Nobel da Paz daquele ano, dada a relevância que atribuíu ao trabalho de Liu Xiaobo.
            Com a "agravante" da transformação de Liu Xiaobo em personagem internacional - um Prêmio Nobel da Paz é uma distinção rara. O Brasil, por exemplo, semelha para muitos uma mediocridade. Edward W.Saïd, o falecido sociólogo palestino-americano, considerava o Brasil, como a Nigéria, uma nação desimportante[1]. E vejam só, quando no tempo em que os militares davam as cartas no Brasil, ao saber a cúpula da intenção do Comitê Nobel de atribuir o Prêmio Nobel a Dom Helder Câmara, encarregou o representante diplomático - creio que Encarregado de Negócios - a empenhar-se para dissuadir o comitê norueguês de obter essa concessão ao Brasil: negar, na prática, a Dom Helder tão merecido galardão. Embora quem tenha logrado tal não faça segredo desse cometimento, prefiro não declinar-lhe o nome, porque me conto entre os que julgariam grande honra para o Brasil ter Dom Hélder  ganho o laurel. Por motivos similares, Pérez Esquivel ganhou o Nobel da Paz para a Argentina, e os generais argentinos ou não quiseram, ou não puderam evitar que Adolfo Pérez Esquivel lograsse receber em 1980 o prêmio.
           Dom Hélder, cujo merecido processo de beatificação pelo dicastério competente da Cúria Romana se encontra em curso, por determinação de nosso Papa Francisco, deverá, estou certo, ganhar em breve o caminho dos altares. Para quem teve a fortuna de conhecê-lo pessoalmente, bastava privar com ele, além de ter presente a sua grande e benemérita obra, notadamente na Arquidiocese de Olinda e Recife, para que nos impressionasse sobremaneira o seu trabalho apostólico, que o seu triste sucessor, Dom José Cardoso Sobrinho, não lograria desfazer ou desmerecer.
            Mas voltemos ao caminho difícil que lhe reservou o Estado chinês por haver merecido a honrosa atenção do comitê do Nobel, que está afeto ao Reino da Noruega.  Àquele tempo, presidiam a República Popular da China, o chamado regime da presidência burocrática, integrado por Hu Jintao (2002-2012) e por seu Primeiro Ministro Wen Jiabao. O regime chinês, depois da liderança carismática de Deng Xiaoping, morto em 19 de fevereiro de 1997, se estruturaria, afinal, em tipo de regime de transição, em que o poder, após curtas presidências, passaria a Hu, como já indicado.
             O tratamento dado por Beijing a Liu Xiaobo se caracterizaria por mescla de crueldade e mesquinharia. Condenado a onze de prisão, seria prontamente transferido para enxovia interiorana, ao norte da RPC - enquanto à esposa Liu Xia caberia, na prática, o cárcere privado, eis que não tinha sequer licença para sair de casa.
              A RPC, cujo poder tem crescido bastante - como o sentem especialmente os respectivos vizinhos, inclusive e sobretudo os colindâneos com os chamados mares do Sul da China, a que Beijing, quando lhe interessa,  busca intimidar por todos os modos, sobretudo no que tange à Lei do Mar e a seus supostos direitos de exploração e explotação - pensou que poderia intimidar a pequena Noruega, para dissuadi-la eventualmente da concessão do Prêmio Nobel da Paz.
              Não creio que seja o caso de descer a minúcias, mas as tentativas de intimidação ao governo de Oslo não faltaram. O único paragão que encontrar-se possa na graduada escala da grande potência que busca confrontar o pequeno estado norueguês estaria na reação de Adolf Hitler quando a Noruega concedeu o Prêmio Nobel a Carl von Ossietsky, em 1935.  Esse jornalista e escritor católico não pôde recolher o prêmio porque o ditador nazista se recusou a libertá-lo do campo de concentração onde se achava. Morreria de tuberculose, e apesar de sua condição de pacifista não mereceria sequer do Führer a atenção de consigná-lo a um hospital.
              Na época, ainda era desconhecida a extensão da perversidade do ditador nazista. Hitler se enfureceu com a concessão do prêmio ao jornalista católico, como se tal fôra afronta pessoal...      
              Como se vê, os regimes ditatoriais sóem tentar repudiar e desmerecer a concessão do Prêmio Nobel da Paz. Mesmo em países pequenos, como é o caso da Guatemala, a concessão do Prêmio Nobel a Rigoberta Menchú, lider indígena, que tanto se batera pelo respeito à sua etnia (assim como a de várias outras assemelhadas, nesse estado indígena da Guatemala) despertou naquele importante país da América Central a reação despropositada das classes dominantes, "revoltadas" com a concessão do Prêmio Nobel da Paz a uma representante indígena. Chegaram até mesmo a veicular candidaturas avulsas de supostas ativistas de origem européia e nacionalidade guatemalteca, mantendo-as de certa maneira artificial, com que pensavam dar a impressão, veiculada por setores da imprensa, de que tais senhoras vinculadas a atividades caritativas sem qualquer especial relevo reunissem alguma possibilidade de receber a laurea...
               Mas deixemos de lado as mesquinhas inquietudes de sociedades que confundem chás de beneficência com a atividade, muita vez com perigo para a pessoa empenhada, dadas as características sociais de um passado similar ao feudal. A reação de muitos na sociedade da Guatemala ao merecido prêmio dado à Rigoberta não representou surpresa para quem tivesse um conhecimento menos superficial das características de certos extratos, demasiado embalados em um convívio arcaico, a que a outorga do Nobel representou um saudável choque de realidade.
                O atual estado da República Popular da China trai pela reação ao que a classe dominante (pois ela continua a existir mesmo na utopia comunista - chinesa - que controla o Estado através da censura e das prisões) considera ameaça inaceitável: a concessão ao pobre ativista Liu Xiaobo do Prêmio Nobel da Paz, que é visto por essa gente - Hitler, Hu Jintao e Xi Jinping - como se fora verdadeiro opróbrio nacional.
                Não tenho a menor dúvida que tal também tenha sido a reação de Deng Xiaoping. No entanto, Liu Xiaobo  quiçá participara - e pagou por isso - como militante nas demonstrações da Praça Tiananmen, tendo sofrido alguma pena menor por ter participado nas diversas  manifestações que assinalam a ocupação da Praça pela juventude chinesa e por muitos ativistas e simpatizantes em faixas etárias mais altas.  
               No período da liderança burocrática de Hu Jintao, começou a se tornar possível uma atitude menos dramática quanto ao ocorrido na praça da Paz Celestial.
               Infelizmente, esses indícios de desdramatização se terão esvanecido no iniciante período de Xi Jinping, que assumiu o poder com muito mais força do que os antecessores. A par disso, Xi  tem muita admiração por Mao Zedong (1893 - 1976). No complexo quadro chinês, que Xi possa ser admirador maoista não é um bom sinal quanto a perspectivas de uma gradual flexibilização do regime, como se verificou, v.g., com o Premier Zhao Ziyang (1919 -2005). A partir de Junho de 1989, reunião do Politburo o despoja de todas as atividades e cargos oficiais. Inicia-se então o longo período da prisão domiciliar, que finda com a sua morte em 17 de janeiro de 2005.
                 Xi Jinping não é mais do modelo burocrático  como o foi seu antecessor Hu Jintao, e outros chefes de estado, após o desaparecimento de Deng Xiaoping, em 1997. Xi domina a atual burocracia chinesa, em especial a do PCC, de modo bastante mais acentuado de que os que lhe antecederam nesse período de transição. Como já aludi, a sua admiração por Mao Zedong em nada favorece uma disposição menos rígida.
                     De qualquer forma, é uma mentalidade repressiva que nos mostra o quão perdeu a sociedade chinesa com a partida antecipada do poder de Zhao Ziyang. Mesmo os seus antecessores no mando - nesse período a partir da morte de Deng Xiaoping (19 de fevereiro de 1997) até a assunção de Xi Jinping, em 15 de março de 2013.
                      A partir da assunção de Xi se afirma uma liderança mais dinâmica e abrangente, posto que tal ênfase se reflita bastante para um viés mais repressivo. A característica anterior do burocratismo desaparece, e um líder mais ativo se mostra claramente. Mas tal viés se tem voltado mais para o aspecto do controle e da repressão, de que são exemplos o menor espaço dado a atividades que possam ter a ver com alguma maior abertura. Portanto, a força da presidência de Xi Jinping vai na direção tendente à maiores intentos de controle da sociedade.
                      Se alguém admira Mao Zedong, a despeito do caráter destrutivo de sua liderança, da fome que imperou em parte de seu governo por iniciativas irresponsáveis como a dos guardas vermelhos e da grande fome no campo e nas cidades, por outros programas demenciais de Mao, caberá reconhecer que esse admirador pode ser um perigo para a nova China.
                        Por isso tudo, não surpreende, por mais lamentável e mesmo abominável que seja, o tratamento dado a Liu Xiaobo sobremodo na parte final da sua existência. Só pode merecer condenação e mesmo desprezo a maneira sórdida e mesquinha,com que se denegou ao doente terminal (câncer no figado) Liu Xiaobo até mesmo a eventualidade de seu transporte para um nosocômio em que ele recebesse o melhor tratamento acessível ao cidadão chinês nesse paraíso socialista.
                        O que se viu e se tem ora colhido são indicações de um poder cruel e que está em faixa similar àquela do nazi-fascismo, quando não só se denegou que Liu fosse transferido para um hospital digno da atual pujança do Estado chinês, ao invés de ser ignominiosamente retido em uma enfermaria um paciente terminal de câncer hepático.
                          A postura de Liu mostra a firmeza de seu caráter, e a baixeza de seus carcereiros. Há rumores quanto a um tratamento ainda mais desprezível, que se acerque de práticas onde o homicídio já apareça como uma possibilidade concreta.
                            Perdeu o regime chinês uma grande oportunidade de diferençar-se do carrasco nazista. Pelos modos e atitudes, nada foi feito para atender à enfermidade de que padecia um preso por crime de consciência, uma das formas mais indicativas de quão retrógrado, repugnante e, portanto, repulsivo, é um regime que em nada se distingue das mais sórdidas repressões, que lembram um panorama hobbesiano.
                           Por vezes, os grandes desse mundo não aquilatam a extensão do mal que podem causar a si próprios.
                            Seria interessante que esses senhores todo-poderosos venham a ler a biografia da última imperatriz chinesa Ci Xi (1835 - 1908). Apesar das enormes dificuldades do período, descritas com detalhes e isenção pela autora Jung Chang (foi a fase do imperialismo ocidental contra a China, com todas as dificuldades e baixarias sofridas), a imperatriz viúva legou à sua posteridade uma democracia.  
                             Contrista e por vezes revolta, que o exemplo dado por uma grande mulher que exerceu o poder por cerca de trinta e cinco anos, em um período caracterizado pelo imperialismo mais desavergonhado de que alacremente participaram as potências ocidentais e até mesmo o recentemente armado Império do Japão, ela o tenha logrado superar, em meio às cicatrizes e as amputações (que só o tempo iria ajudar a vencer), e deixado um nome como governante que ainda não encontra paragão.  
                              Espanta que essa grande senhora que tanto sofreu com a violência, a desonestidade e a cupidez do Ocidente, tenha deixado uma constituição em que estabelecia a livre transmissão de pensamento e idéias.
                            Que o célebre Império do Meio continue hoje a privilegiar atitudes e comportamento como aqueles que nortearam o ignóbil, ignavo e sórdido tratamento dado ao idealista e homem probo que foi  Liu Xiaobo está abaixo de qualquer possibilidade de perdão ou eventual relativização. Passados tantos anos, mais do que surpreender, revolta e, mesmo, enraivece que a democracia chinesa, instituída pela Imperatriz Ci Xi, seja hoje apenas  um dado surpreendente em uma longa fileira de atos e comportamentos que merecem mais do que condenação,  revolta e menosprezo.
                          De que servem os séculos e os milênios, se ao invés de progredir, assistimos, em meio a cinismo e desalento, a regressão do homo dito sapiens ao cenário de Thomas Hobbes?

( Fontes: Empress Dowager Cixi, de  Jung Chang (em português A Imperatriz de Ferro); Prisoner of the State, trad. e editado por Bao Pu,. Renee Chiang e Adi Ignatius; The New York Review of Books; The New Yorker; Thomas Hobbes ).      




[1] Edward Said o qualificara, na verdade, de "non-descript" country, tal como a Nigéria.Considerar o Brasil como um país sem características distintivas (Webster Dictionary) depõe mais contra o autor desse despropósito, tal o absurdo da qualificação. 

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