Para entender o presente, precisamos
esmiuçar o passado. Tanto a mídia, quanto os intelectuais, em grande parte,
presumiram que Hillary Clinton venceria a eleição. Parecia
premissa de uma tese. A alternativa não era sequer pensável.
Havia também os debates. Apesar de suas
confusões, nenhum deles sequer apontara para resultado contrário à Hillary.
E, no entanto, existiam vozes
discrepantes. James Comey talvez haja sido a mais aguda. Na questão dos
e-mails de Hillary, a sua primeira aparição soara estranha, fora de lugar.
Levantar uma questão sobre os tais e-mails, grosseiramente repreender a
candidata por não ter arrumado bem o seu instrumento de trabalho, soou para
muitos fora de lugar, estranho. Tratar uma candidata à presidência, com a folha
corrida de Hillary, como se fosse uma colegial, apareceu para muitos como
absurdo, desrespeitoso mesmo.
Quando a reta final já apontava, o otimismo
quanto à candidatura de Hillary reforçou-se. Além do juízo básico: como um
concorrente com o preparo e as realizações da democrata, seu trânsito no
eleitorado progressista, na faixa afro-americana, poderia perder a eleição, não
só nos estados democratas e progressistas, mas também naqueles ditos
contenciosos, deixariam de sufragá-la?
A verdade é que não contaram com a
circunstância de nesta eleição, aparentemente já decidida, com a estranha
repetição do papel - contrário segundo os ditames do Departamento de Justiça -
e que funcionou como uma intervenção fora de controle, em alguns pontos com a
estranha aparência de prejulgar o que até não acontecera. Há a velha observação
do pugilismo que diz que o murro do knock-out
surpreende o atingido (no caso, a atingida). A absurda intervenção de James
Comey, anunciando inquietantes possíveis descobertas em um computador que nem
de Hillary era levantou uma senhora lebre, e conforme declarou a candidata
influíu em muitos sufragantes antecipados. Irresponsável, mas nada foi dito que
tentasse pelo menos colocar os fatos no seu lugar. A própria candidata
democrata deixou constância da intromissão indevida, mas inexistia
possibilidade de reverter a situação, de pôr os fatos em seu lugar. É difícil
determinar o que causou essa intromissão no processo eleitoral, que os manuais
do Departamento de Justiça recomendavam jamais fazê-la.
Este é um dos lados do problema. A
criação artificial de uma forte influência para que os votantes antecipados que
pretendiam sufragar a democrata, deixassem de fazê-lo.
Mas há muitas outras causas da
inchação dos votos para Trump, notadamente a abulia de Barack Obama,
recusando-se na prática a defender a candidata do próprio partido, além de não
alertar o eleitorado americano sobre os perigos colocados pelo candidato do
GOP, em termos da ousada interferência no processo eleitoral do amigão Vladimir Putin. Essa descabida e
inaceitável ingerência não deveria ter passado em silêncio. Por primeira vez,
um autócrata estrangeiro interferiu impunemente para prejudicar a candidata
democrata e favorecer o respectivo protegido.
Mesmo que as investigações dos
organismos de segurança parem por aí - o que não semelha de resto provável -
fica desde já cristalinamente claro que a abulia de Barack H. Obama recusando-se
a informar o Povo americano de o que estava acontecendo constitui um dos
maiores erros de sua presidência. Examinando essa ousada intervenção do Kremlin em assuntos do Povo americano - o que jamais
ocorrera nos anos da Guerra Fria, quando uma ainda pujante União Soviética
constituía o grande rival dos Estados Unidos e jamais ousara embrenhar-se pela
senda de Putin - estamos diante de um fato que fala mais do que muitos livros
sobre a realidade do declínio americano.
A subestimação do candidato
Donald Trump pela mídia e pelo estamento político constituiu outro importante fator
para tornar-lhe a vitória pelo voto
indireto muito mais possível de o que parecia para os observadores. Quem sinalizou o avanço do candidato Trump sobre a faixa dos
eleitores operários brancos de baixa escolaridade foi o conhecido jornalista George Packer - que também se assinalou
por relevantes matérias no passado sobre o decline
e a sua incidência no interior americano, notadamente nas small towns esvaziadas no próprio comércio e nos enormes galpões,
que a evolução da indústria e da concorrência estrangeira decretou súbita
decadência, a que também contribuíu a desastrosa empresa que causou um trilhão de dólares de prejuízos aos Estados Unidos, consoante o Nobel Paul Krugman.
Grande parte desse segmento - que
antes votava pelos democratas - escolheu como seu favorito a Donald Trump. Que
o partido democrata - e por conseguinte Hillary - tenha permitido de certa
forma que esse eleitorado branco, com baixa formação profissional, os chamados
rednecks (os pescoços vermelhos de um operariado à antiga, habituado a
trabalhar no ar livre e sem grande formação profissional) tenham desertado dos
democratas, e se bandeado para Trump, foi outro desenvolvimento dessa eleição,
que George Packer alertou em artigo
no New Yorker pré-eleição tanto ao Partido Democrata, quanto à candidata
Hillary.
O trabalho de Trump, ainda que
demagógico, por prometer a essa gente o que em sã mente ele não pode deliver (tornar realidade), se nos diz
da própria subestimada habilidade, muito contribuíu para trazer muitos votos de
trabalhadores brancos, de baixo preparo profissional, para as urnas
republicanas.
Como objetivamente essa
transferência de votos do Partido Democrata, i.e. Hillary Clinton, para Donald
Trump representou outro aporte importante para os objetivos do milionário
republicano nesta última eleição. O que ele não pode contar é com a
sustentabilidade do seu elo com o voto dos rednecks.
Se há - ou havia - forte corrente para a transferência dos votos dos
trabalhadores brancos de baixa escolaridade e igualmente baixa proficiência
profissional para o candidato republicano Trump, em detrimento do seu apoio
tradicional, dado às fileiras dos democratas, por motivos econômicos, conforme
a linha dos democratas nas suas alianças com os sindicatos de operários, e se
tivermos presente que as promessas de Trump baseadas na demagogia e no
oportunismo não parecem ter possibilidades mágicas de reverter os fenômenos industriais
que formaram o Cinturão da Ferrugem
(Rust Belt), o refluxo do operário de baixa qualificação para os candidatos
democratas parece ter maiores possibilidades do que as vazias promessas do
demagogo Trump.
Em seu artigo do New Yorker, que é anterior à eleição de Trump, George Packer
assinalava que Hillary estava consciente dessa 'invasão' pelo republicano de um
campo que pela deterioração de sua condição fabril se achava bastante
fragilizado quanto à possibilidade de que fosse arrebanhado pelo discurso de
demagogos, como foi justamente o caso.
Ainda que a posteriori, tem serventia o
conhecimento desse êxito paralelo do candidato Trump. Não lhe faltaram escrúpulos
para prometer situações que não poderia disponibilizar (deliver).
Se ganhou a eleição nessas
condições, nada garante que repita o sucesso da próxima vez.
( Fontes: George Packer, em
The NewYorker; Paul Krugman )
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