Os críticos desse sistema de 'missões'
apontaram para o abandono de um sistema estabelecido de instituições sanitárias
(centenas de hospitais e milhares de clínicas móveis), o custo para a Venezuela
(seis bilhões de dólares somente em 2013), e a natureza política da operação,
eis que Chávez recebia obediência em troca da própria munificência. Atualmente,
as 'missões' existem precariamente, mas o sistema de inteligência cubano
permanece completamente entrincheirado na Venezuela. O Governo cedeu a
gerência de seu sistema nacional de identificação para funcionários cubanos,
assim como o controle de negócios, aduanas e tabeliões públicos.
Para tornar-se o herdeiro
político de Castro, Chávez ambicionava transformar-se no líder do
"socialismo do vigésimo-primeiro século", em tornar-se
"tudo". Ele queria ficar no poder até 2030, quando iria celebrar o
seu septuagésimo-sexto aniversário e o
ducentésimo aniversário da morte de Bolívar. Seria aposta que Chávez perderia.
Tendo descurado da própria
saúde, e diagnosticado com câncer já bastante adiantado, ele morre em Caracas em 5 de março de 2013,
depois de submeter-se a longos e algo misteriosos tratamentos em Havana. Em Pátria ou Morte, recente novela de
Alberto Barrera Tyska, ambientada durante a agonia terminal do Comandante
em Cuba, uma mulher pobre explica para Madeleine, uma acadêmica americana,
porque ela sente gratidão a Chávez:
"Ele mudou o meu modo de
pensar, de ver, de olhar para mim mesmo. Você me
pergunta o que ele me deu, concretamente, você diz. Como eu lhe disse. É que
nós não tínhamos nada. Ou melhor dito, nós sentíamos que nós éramos nada, que
nós não tínhamos valor, que nós não importávamos. E é isto que Chávez mudou. Foi isto que ele nos
deu."
O Comandante era um deles.
Ele fala com eles e por eles. Ele apelava para a religiosidade natural de um
Povo atraído pela fé, mágica e a religiosidade popular da Santeria. Esta atração poderia ser usada para manipular a opinião e
o comportamento. Chávez sempre levara a sua identificação com Bolivar a
extremos, mas em 2010 tais extremos atingiram um nível especialmente mórbido:
ele abriu o sarcófago de Bolívar, ordenou a pintura de um retrato supostamente
baseado em provas de DNA, E apresentou Bolivar não como um creole que era (de pura descendência espanhola), mas como um
mestiço, como Chávez.
O homem a quem se confiou a
responsabilidade pelo legado de Chávez é
Nicolás Maduro. Ele foi chamado 'o sacerdote do Chavismo', pelo
jornalista venezuelano Roger Santodomingo, o autor De verde a Maduro, uma breve biografia - mais precisamente, uma
parte de reportagem - publicada em 2013 e baseada em um par de entrevistas feitas
alguns anos antes. Maduro, que nasceu em
1962, recordou, em de- talhes, cenas de "brutalidade policial" que
ele tinha testemunhado como criança. Como um jovem ele tentara ser um músico de
rock e um jogador de baseball, mas também mantivera conexões
com organizações de esquerda, e graças a isso, em 1986, passou alguns meses em
Cuba, estudando marxismo-leninismo. Ele foi também por um tempo motorista de
ônibus e líder sindical.
Ainda que em 1993 visitara a Chávez na prisão, ele não era do seu
círculo mais próximo e foi pouco notado quando em 2000 foi eleito deputado para
a Assembléia Nacional. A sua vertiginosa ascensão ao poder começa em
2006, quando Chávez o nomeia Ministro de Relações Exteriores. Cercado
por homens mais velhos de que ele, e por oficiais militares de sua idade em quem
não confiava, busca ser independente. Chávez precisa da lealdade e do apoio de
homens mais jovens e veio a conscientizar-se de que Maduro lhe era devotado de
forma incondicional. Durante o tempo de Maduro como diplomata - nos anos dos
bons tempos do petróleo - ele consolidou as alianças do regime com países
latino-americanos politicamente favoráveis. Mas foi a sua intimidade com Chávez
durante a enfermidade terminal do Comandante que lhe trouxe a Presidência.
Maduro teve um Messias antes de Chávez, o famoso Guru indiano Sai Baba,
a quem seus seguidores atribuíam mágicos poderes. Ele e sua esposa passaram
algum tempo no ashram de Sai Baba, na
Índia. A ligação com Sai Baba explica o seu uso frequente de túnicas laranja, o
seu estilo indiano de saudar, com mãos fechadas levantadas diante do rosto, e a
sua supersticiosa convicção de ser protegido por algum poder superior. As
revelações acerca da pedofilia de Sai Baba e sua proximidade com o ditador de
Uganda, Idi Amin, não parecem havê-lo disturbado. Sem renunciar à própria devoção a Sai Baba,
Maduro a transferiu para Chávez. Durante
a permanência como Ministro de Relações Exteriores, ele se torna vice-presidente de Chávez, o seu porta-voz e o
fiel apóstolo.
Pouco antes da morte de Chávez, Maduro disse : "Eu sou
Chávez". Mas embora falasse como
Chávez, ele certamente não era Chávez.
Depois de sua morte, Maduro declarou em público que "Chávez
apareceu para mim na forma de um passarinho". Embora alguns escritores ainda tratem Maduro
como líder astuto e um autêntico revolucionário que se defrontou com tempos
difíceis, o regime agora está muito perto
da plena ditadura. Perdeu a sua aura quase religiosa. O governo de
Maduro tem forçado os venezuelanos ou à submissão, ou ao exílio (cerca de
quinhentos mil já fugiram nos últimos dois anos), enquanto espera que a cotação
do petróleo suba. Mas nem mesmo esse
milagre compensaria pelo declínio da produção na PDVSA, agora com 1,7 milhão de
barris por dia, metade do que a empresa produzia quando Chávez foi eleito em
1998. Sem embargo, Maduro tenciona continuar no governo. Eleições presidenciais estão marcadas para o
fim de abril. Poucos pensam que elas serão livres ou abertas e justas. Figuras chave da Oposição foram afastadas da
competição, seja pelo cárcere, seja pelo exílio.
A presidência de Maduro
provocou uma das mais impressionantes
defesas da democracia no vigésimo-primeiro século. Entre abril e julho de 2017,
centenas de milhares foram às ruas protestar contra a decisão da Corte Suprema
da Venezuela - que Maduro controla - de dissolver a Assembleia Nacional, o
único poder independente que ainda existe na Venezuela, em que uma maioria de
dois terços se opõe ao Governo. As
confrontações dos demonstrantes com a Guarda Nacional Bolivariana provocaram
120 mortes, milhares de feridos, e a prisão e tortura de centenas de pessoas.
A dezesseis de julho, cerca de sete e meio milhão de pessoas - um quarto
da população e mais que um terço do eleitorado
- votou em um referendo oficioso realizado pela Oposição para defender a
Assembleia Nacional e repelir a convocação pela Autoridade Eleitoral (também
controlada por Maduro) para eleger uma
nova e ilegal Assembleia Constituinte. A
maior parte dos candidatos para essa
Assembleia Constituinte tinha sido escolhida por administrações municipais e
organizações leais a Maduro.
Todo esse esforço resultou em nada. Depois de eleição claramente
fraudulenta (de acordo com a Smartmatic, a companhia que
providenciara o software para o
pleito), a espúria Assembléia Constituinte foi estabelecida. Com a oposição dividida, enfraquecida, e
desencorajada, Maduro tem agora imenso poder, o qual ele tem usado para
severamente limitar a liberdade de expressão. Depois dos protestos, tornou-se
perigoso divulgar imagens da pobreza e desespero nos quais grande parte do país
se encontra. A Assembleia Constituinte - de que muitos de seus membros têm
incitado o ódio por vinte anos - aprovou lei que pode estabelecer como tempo de
prisão até vinte anos para todo aquele que "fomente, promova ou incite o
ódio."
De acordo com o ativista de saúde pública Feliciano Reyna, muito da
culpa pela presente crise está com Maduro. "O que está acontecendo é
deliberado", diz Reyna, apontando para a recusa do presidente de aceitar
uma oferta de 13 países para mandar alimentos e remédios através de NGOs
nacionais e internacionais, e pela própria Nações Unidas. O poderoso político
Diosdado Cabello disse que a Venezuela não aceitará a ajuda, porque ao fazê-lo
abriria as portas para uma invasão imperialista. Em suas aparições públicas (durante as quais,
ocasionalmente, ele dança a salsa) Maduro sugeriu que a fome poderia ser
aliviada pela criação de coelhos.
Uma de suas soluções para a crise envolveria combinação especialmen- te
engenhosa de alimentar a gente e de manipulá-la politicamente. Cerca de um
terço do povo da Venezuela depende do recebimento de caixas importadas de
alimentos com CLAP, as iniciais dos comitês locais para suprimentos e produção,
que se encarrega da distribuição conforme um sistema de cartas de identidade.
(Um típico pacote CLAP, que se supõe chegue a cada três semanas, contém
pequenas porções de massa, arroz, leite em pó, e atum enlatado). No referendo
para a nova "Assembleia Constituinte" o Governo veio com a ideia de
forçar os recipiendários para renovar
esses cartões nos recintos eleitorais, e assim intimidá-los com a perspectiva
de perderem os seus cartões de alimentação e mesmo suas casas, se eles não
votassem pelos candidatos oficiais.
Assim, ao invés de reverterem o teimoso estatismo da Revolução Bolivariana
de Chávez, Maduro tem concentrado no pagamento da dívida externa. Para fazê-lo, ele sufocou as importações de
bens e serviços, que caíram em 75% entre 2012 e 2016. A maior parte dessa
brutal contração recaíu sobre manufaturados, comércio, construção e
transportes, mas houve um amplo prejuízo
para o setor privado em geral. Entre 1998 e 2016, o número de empresas
particulares caíu de treze mil para quatro mil. Ao mesmo tempo, Maduro tem impresso mais papel moeda,
causando dramática inflação. A população tem agora de escolher entre alimentos
e remédios.
O Governo Maduro e seus partidários sustentam que a crise é o resultado
de guerra econômica realizada pelo
Império Americano contra o Povo da Venezuela. Mas os Estados Unidos tem sido
sempre o principal freguês do petróleo venezuelano - ele adquiriu $477 bilhões
desde 1998 - e agora se tornou um dos poucos a pagar em cash. A
responsabilidade plena está com os próprios regimes Chávez e Maduro, que por
quinze anos tiveram um ganho excepcional com os recursos do petróleo,
comparável unicamente com aqueles dos principais produtores do Médio Oriente,
e sem embargo desperdiçaram esse rendimento de forma irresponsável. O governo de Maduro não é o desafortunado
herdeiro do chavismo, mas a sua conclusão natural, vale dizer a
ressaca depois da festa. Mas é também,
nas palavras de Feliciano Reyna, "um projeto militarista, destinado a
controlar o poder, de forma exorbitantemente corrupta, e infligindo extenso prejuízo para a
população venezuelana."
Através da história da Venezuela, que se tem
assinalado pelo número de guerras civis e longos períodos de tirania, as forças
armadas intervieram amiúde e realizaram mudanças radicais. Aconteceu em 1945,
quando os militares cederam o poder aos civis e abriram o caminho para um breve
experimento com a democracia (1945-1948). Tal anunciou o regime democrático que
chegou ao poder em 1958, durou quarenta anos, e conduziu a mais realizações
sociais, econômicas e culturais do que equívocos, antes de seu colapso em 1998.
Agora, até mesmo uma
intervenção militar parece improvável.
Miguel Henrique Otero, o diretor-chefe de El Nacional, um jornal
independente com uma longa história que hoje apenas logra sobreviver de forma
precária, declarou a Enrique Krauze:
"Os militares estão divididos em
vários grupos. Muitos deles - na ativa ou reformados - dirigem companhias
públicas. Recentemente, um oficial da
Guarda Nacional Bolivariano, que participou da repressão aos protestos de 2017, foi nomeado diretor da PDVSA. Outros
têm conexões com os narcos, e alguns ocupam posições no governo. Em 2002
existiam setenta generais na Venezuela, hoje são 1.200. Os soldados rasos
ganham pouco e são uma reserva de violência e deserção. O Exército no momento
não parece apresentar sinais de rebelião, e, se tais sentimentos existem nos
cargos intermediários do oficialato, aqueles que os têm vivem sob o temor da
espionagem cubana."
Sem
embargo, se o regime agora aparente que tem tudo sob controle, ele pode ainda
terminar derrotado pelo custo material e humano de seus fracassos. "Se a
economia persistir como está, nós iremos morrer", declarou Ricardo
Hausmann. Ele não está exagerando. Mesmo se as cotações do petróleo voltarem a
subir, enquanto a produção de petróleo
venezuelano não se recuperar, o país está condenado. Ele já está bem no caminho
da hiper-inflação, a que quase nenhum regime logrou resistir. O Governo Maduro pode continuar a aplicar o método cubano de controle através
da escassez, mas ele não pode afastar a possibilidade de que a crescente fome e
enfermidades da população leve a uma erupção social de enormes proporções.
Há uma estratégia de saída? De
acordo com Hausmann, o regime precisa autorizar de imediato a entrada de
alimentos e remédios na Venezuela, negociar uma redução substancial da sua
enorme dívida, arranjar por um prazo adequado para o pagamento do restante, e
com os recursos remanescentes abrir as portas para as importações que poderão
talvez reativar a economia. Esta mudança
econômica teria que ser acompanhada por igualmente dramáticas mudanças
políticas. O governo de Maduro teria que
garantir a realização de eleições livres e justas, liberar os prisioneiros políticos e
reconhecer a Assembleia Nacional como o único órgão parlamentar legítimo.
Tudo leva
a crer que Maduro tudo fará para opor-se a tais reformas. Mas a Venezuela caíu
em abismo tão profundo que medidas positivas
de acordo com as linhas acima enunciadas iriam receber quase universal
apoio dos países democráticos em todo o
mundo. Os Estados Unidos poderia no passado ter favorecido tais soluções, mas
sob Donald Trump ele cae em uma espécie de chavismo.
Embora apoiadores na Europa e na América Latina tenham expressado solidariedade
com a Oposição, os Venezuelanos, na realidade, permanecem sozinhos. Em um dos infernais hospitais do país, uma mulher disse para um repórter de
El Nacional: "Que país rico. Nós tínhamos tudo e eles o destruíram. E
também o futuro."
(Fonte: Hell of a Fiesta (que diabo de festa!) Escrito por
Enrique Krauze, e publicado por The New York Review, 8 de março de 2018. Dada a situação da Venezuela, senti que,
mesmo não autorizado, deveria publicar tradução de parte do artigo no blog, por
apresentar quadro veraz e, por conseguinte, de grande importância para a compreensão da tragédia
político-social que hoje atravessa seu Povo, na Pátria de Bolívar).
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