sexta-feira, 16 de março de 2018

A Ruína da Venezuela, por Enrique Krauze



                                               
                                                                                              
                    Os críticos desse sistema de 'missões' apontaram para o abandono de um sistema estabelecido de instituições sanitárias (centenas de hospitais e milhares de clínicas móveis), o custo para a Venezuela (seis bilhões de dólares somente em 2013), e a natureza política da operação, eis que Chávez recebia obediência em troca da própria munificência. Atualmente, as 'missões' existem precariamente, mas o sistema de inteligência cubano permanece completamente entrincheirado na Venezuela. O Governo cedeu a gerência de seu sistema nacional de identificação para funcionários cubanos, assim como o controle de negócios, aduanas e tabeliões públicos.
                  Para tornar-se o herdeiro político de Castro, Chávez ambicionava transformar-se no líder do "socialismo do vigésimo-primeiro século", em tornar-se "tudo". Ele queria ficar no poder até 2030, quando iria celebrar o seu septuagésimo-sexto aniversário  e o ducentésimo aniversário da morte de Bolívar. Seria aposta que Chávez  perderia.
                 Tendo descurado da própria saúde, e diagnosticado com câncer já bastante adiantado,  ele morre em Caracas em 5 de março de 2013, depois de submeter-se a longos e algo misteriosos tratamentos em Havana. Em Pátria ou Morte, recente novela de Alberto Barrera Tyska, ambientada durante a agonia terminal do Comandante em Cuba, uma mulher pobre explica para Madeleine, uma acadêmica americana, porque ela sente gratidão a Chávez:
                  "Ele mudou o meu modo de pensar, de ver, de olhar para mim mesmo. Você  me pergunta o que ele me deu, concretamente, você diz.  Como eu lhe disse. É que nós não tínhamos nada. Ou melhor dito, nós sentíamos que nós éramos nada,  que nós não tínhamos valor, que nós não importávamos. E é isto que Chávez  mudou. Foi isto que ele nos deu."
                  O Comandante era um deles. Ele fala com eles e por eles. Ele apelava para a religiosidade natural de um Povo atraído pela fé, mágica e a religiosidade popular da Santeria. Esta atração poderia ser usada para manipular a opinião e o comportamento. Chávez sempre levara a sua identificação com Bolivar a extremos, mas em 2010 tais extremos atingiram um nível especialmente mórbido: ele abriu o sarcófago de Bolívar, ordenou a pintura de um retrato supostamente baseado em provas de DNA, E apresentou Bolivar não como um creole que era (de pura descendência espanhola), mas como um mestiço, como Chávez.
                 O homem a quem se confiou a responsabilidade pelo legado de Chávez é  Nicolás Maduro. Ele foi chamado 'o sacerdote do Chavismo', pelo jornalista venezuelano Roger Santodomingo, o autor De verde a Maduro, uma breve biografia - mais precisamente, uma parte de reportagem - publicada em 2013 e baseada em um par de entrevistas feitas alguns anos antes.  Maduro, que nasceu em 1962, recordou, em de- talhes, cenas de "brutalidade policial" que ele tinha testemunhado como criança. Como um jovem ele tentara ser um músico de rock e um jogador de baseball, mas também mantivera conexões com organizações de esquerda, e graças a isso, em 1986, passou alguns meses em Cuba, estudando marxismo-leninismo. Ele foi também por um tempo motorista de ônibus e líder sindical.
                  Ainda que em 1993 visitara a Chávez na prisão, ele não era do seu círculo mais próximo e foi pouco notado quando em 2000 foi eleito deputado para a Assembléia Nacional. A sua vertiginosa ascensão ao poder começa em 2006,  quando Chávez o nomeia Ministro de Relações Exteriores. Cercado por homens mais velhos de que ele, e por oficiais militares de sua idade em quem não confiava, busca ser independente.  Chávez precisa da lealdade e do apoio de homens mais jovens e veio a conscientizar-se de que Maduro lhe era devotado de forma incondicional. Durante o tempo de Maduro como diplomata - nos anos dos bons tempos do petróleo - ele consolidou as alianças do regime com países latino-americanos politicamente favoráveis. Mas foi a sua intimidade com Chávez durante a enfermidade terminal do Comandante que lhe trouxe a Presidência.
                  Maduro teve um Messias antes de Chávez, o famoso Guru indiano Sai Baba, a quem seus seguidores atribuíam mágicos poderes. Ele e sua esposa passaram algum tempo no ashram de Sai Baba, na Índia. A ligação com Sai Baba explica o seu uso frequente de túnicas laranja, o seu estilo indiano de saudar, com mãos fechadas levantadas diante do rosto, e a sua supersticiosa convicção de ser protegido por algum poder superior. As revelações acerca da pedofilia de Sai Baba e sua proximidade com o ditador de Uganda, Idi Amin, não parecem havê-lo disturbado.  Sem renunciar à própria devoção a Sai Baba, Maduro a transferiu para Chávez.  Durante a permanência como Ministro de Relações Exteriores, ele se torna  vice-presidente de Chávez, o seu porta-voz e o fiel apóstolo.
                  Pouco antes da morte de Chávez, Maduro disse : "Eu sou Chávez".  Mas embora falasse como Chávez, ele certamente não era Chávez.  Depois de sua morte, Maduro declarou em público que "Chávez apareceu para mim na forma de um passarinho".  Embora alguns escritores ainda tratem Maduro como líder astuto e um autêntico revolucionário que se defrontou com tempos difíceis, o regime agora está muito perto  da plena ditadura. Perdeu a sua aura quase religiosa. O governo de Maduro tem forçado os venezuelanos ou à submissão, ou ao exílio (cerca de quinhentos mil já fugiram nos últimos dois anos), enquanto espera que a cotação do petróleo suba.  Mas nem mesmo esse milagre compensaria pelo declínio da produção na PDVSA, agora com 1,7 milhão de barris por dia, metade do que a empresa produzia quando Chávez foi eleito em 1998. Sem embargo, Maduro tenciona continuar no governo.  Eleições presidenciais estão marcadas para o fim de abril. Poucos pensam que elas serão livres ou abertas e justas.  Figuras chave da Oposição foram afastadas da competição, seja pelo cárcere, seja pelo exílio.
                  A presidência de Maduro provocou  uma das mais impressionantes defesas da democracia no vigésimo-primeiro século. Entre abril e julho de 2017, centenas de milhares foram às ruas protestar contra a decisão da Corte Suprema da Venezuela - que Maduro controla - de dissolver a Assembleia Nacional, o único poder independente que ainda existe na Venezuela, em que uma maioria de dois terços se opõe  ao Governo. As confrontações dos demonstrantes com a Guarda Nacional Bolivariana provocaram 120 mortes, milhares de feridos, e a prisão e tortura de centenas de pessoas.
                  A dezesseis de julho, cerca de sete e meio milhão de pessoas - um quarto da população e mais que um terço do eleitorado  - votou em um referendo oficioso realizado pela Oposição para defender a Assembleia Nacional e repelir a convocação pela Autoridade Eleitoral (também controlada por Maduro)  para eleger uma nova e ilegal Assembleia Constituinte.  A maior parte dos candidatos  para essa Assembleia Constituinte tinha sido escolhida por administrações municipais e organizações leais a Maduro.
                  Todo esse esforço resultou em nada. Depois de eleição claramente fraudulenta (de acordo com a Smartmatic, a companhia que providenciara o software para o pleito), a espúria Assembléia Constituinte foi estabelecida.  Com a oposição dividida, enfraquecida, e desencorajada, Maduro tem agora imenso poder, o qual ele tem usado para severamente limitar a liberdade de expressão. Depois dos protestos, tornou-se perigoso divulgar imagens da pobreza e desespero nos quais grande parte do país se encontra. A Assembleia Constituinte - de que muitos de seus membros têm incitado o ódio por vinte anos - aprovou lei que pode estabelecer como tempo de prisão até vinte anos para todo aquele que "fomente, promova ou incite o ódio."
                  De acordo com o ativista de saúde pública Feliciano Reyna, muito da culpa pela presente crise está com Maduro. "O que está acontecendo é deliberado", diz Reyna, apontando para a recusa do presidente de aceitar uma oferta de 13 países para mandar alimentos e remédios através de NGOs nacionais e internacionais, e pela própria Nações Unidas. O poderoso político Diosdado Cabello disse que a Venezuela não aceitará a ajuda, porque ao fazê-lo abriria as portas para uma invasão imperialista.  Em suas aparições públicas (durante as quais, ocasionalmente, ele dança a salsa) Maduro sugeriu que a fome poderia ser aliviada pela criação de coelhos.
                  Uma de suas soluções para a crise envolveria combinação especialmen- te engenhosa de alimentar a gente e de manipulá-la politicamente. Cerca de um terço do povo da Venezuela depende do recebimento de caixas importadas de alimentos com CLAP, as iniciais dos comitês locais para suprimentos e produção, que se encarrega da distribuição conforme um sistema de cartas de identidade. (Um típico pacote CLAP, que se supõe chegue a cada três semanas, contém pequenas porções de massa, arroz, leite em pó, e atum enlatado). No referendo para a nova "Assembleia Constituinte" o Governo veio com a ideia de forçar os recipiendários  para renovar esses cartões nos recintos eleitorais, e assim intimidá-los com a perspectiva de perderem os seus cartões de alimentação e mesmo suas casas, se eles não votassem pelos candidatos oficiais.
                  Assim, ao invés de reverterem o teimoso estatismo da Revolução Bolivariana de Chávez, Maduro tem concentrado no pagamento da dívida externa.  Para fazê-lo, ele sufocou as importações de bens e serviços, que caíram em 75% entre 2012 e 2016. A maior parte dessa brutal contração recaíu sobre manufaturados, comércio, construção e transportes, mas houve um amplo prejuízo  para o setor privado em geral. Entre 1998 e 2016, o número de empresas particulares caíu de treze mil para quatro mil. Ao mesmo tempo,  Maduro tem impresso mais papel moeda, causando dramática inflação. A população tem agora de escolher entre alimentos e remédios.
                  O Governo Maduro e seus partidários sustentam que a crise é o resultado de guerra econômica  realizada pelo Império Americano contra o Povo da Venezuela. Mas os Estados Unidos tem sido sempre o principal freguês do petróleo venezuelano - ele adquiriu $477 bilhões desde 1998 - e agora se tornou um dos poucos a pagar em cash. A responsabilidade plena está com os próprios regimes Chávez e Maduro, que por quinze anos tiveram um ganho excepcional com os recursos do petróleo, comparável unicamente com aqueles dos principais produtores do Médio Oriente, e sem embargo desperdiçaram esse rendimento de forma irresponsável.  O governo de Maduro não é o desafortunado herdeiro do chavismo,  mas a sua conclusão natural, vale dizer a ressaca depois da festa.  Mas é também, nas palavras de Feliciano Reyna, "um projeto militarista, destinado a controlar o poder, de forma exorbitantemente corrupta,  e infligindo extenso prejuízo para a população venezuelana."
                  Através da história da Venezuela, que se tem assinalado pelo número de guerras civis e longos períodos de tirania, as forças armadas intervieram amiúde e realizaram mudanças radicais. Aconteceu em 1945, quando os militares cederam o poder aos civis e abriram o caminho para um breve experimento com a democracia (1945-1948). Tal anunciou o regime democrático que chegou ao poder em 1958, durou quarenta anos, e conduziu a mais realizações sociais, econômicas e culturais do que equívocos, antes de seu colapso em 1998.
                    Agora, até mesmo uma intervenção militar parece improvável.  Miguel Henrique Otero, o diretor-chefe de El Nacional, um jornal independente com uma longa história que hoje apenas logra sobreviver de forma precária,  declarou a Enrique Krauze:
                     "Os militares estão divididos em vários grupos. Muitos deles - na ativa ou   reformados - dirigem companhias públicas.  Recentemente, um oficial da Guarda Nacional Bolivariano, que participou da repressão aos protestos  de 2017, foi nomeado diretor da PDVSA. Outros têm conexões com os narcos, e alguns ocupam posições no governo. Em 2002 existiam setenta generais na Venezuela, hoje são 1.200. Os soldados rasos ganham pouco e são uma reserva de violência e deserção. O Exército no momento não parece apresentar sinais de rebelião, e, se tais sentimentos existem nos cargos intermediários do oficialato, aqueles que os têm vivem sob o temor da espionagem cubana."
                   Sem embargo, se o regime agora aparente que tem tudo sob controle, ele pode ainda terminar derrotado pelo custo material e humano de seus fracassos. "Se a economia persistir como está, nós iremos morrer", declarou Ricardo Hausmann. Ele não está exagerando. Mesmo se as cotações do petróleo voltarem a subir, enquanto a produção  de petróleo venezuelano não se recuperar, o país está condenado. Ele já está bem no caminho da hiper-inflação, a que quase nenhum regime logrou resistir.  O Governo Maduro pode continuar  a aplicar o método cubano de controle através da escassez, mas ele não pode afastar a possibilidade de que a crescente fome e enfermidades da população leve a uma erupção social de enormes proporções.                                                      
                   Há uma estratégia de saída? De acordo com Hausmann, o regime precisa autorizar de imediato a entrada de alimentos e remédios na Venezuela, negociar uma redução substancial da sua enorme dívida, arranjar por um prazo adequado para o pagamento do restante, e com os recursos remanescentes abrir as portas para as importações que poderão talvez  reativar a economia. Esta mudança econômica teria que ser acompanhada por igualmente dramáticas mudanças políticas.  O governo de Maduro teria que garantir a realização de eleições livres e justas,  liberar os prisioneiros políticos e reconhecer a Assembleia Nacional como o único órgão parlamentar legítimo.
                     Tudo leva a crer que Maduro tudo fará para opor-se a tais reformas. Mas a Venezuela caíu em abismo tão profundo que medidas positivas  de acordo com as linhas acima enunciadas iriam receber quase universal apoio dos países democráticos  em todo o mundo. Os Estados Unidos poderia no passado ter favorecido tais soluções, mas sob Donald Trump ele cae em uma espécie de chavismo. Embora apoiadores na Europa e na América Latina tenham expressado solidariedade com a Oposição, os Venezuelanos, na realidade, permanecem sozinhos.  Em um dos infernais hospitais  do país, uma mulher disse para um repórter de El Nacional: "Que país rico. Nós tínhamos tudo e eles o destruíram. E também o futuro."

(Fonte: Hell of a Fiesta (que diabo de festa!) Escrito por Enrique Krauze, e publicado por The New York Review, 8 de março de 2018.  Dada a situação da Venezuela, senti que, mesmo não autorizado, deveria publicar tradução de parte do artigo no blog, por apresentar quadro veraz e, por conseguinte, de grande  importância para a compreensão da tragédia político-social  que  hoje atravessa seu Povo, na Pátria de Bolívar).              

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