sábado, 10 de março de 2018

Amelia Earhart


                                                            

                  A aviadora Amelia Earhart foi por muito tempo não só exemplo de coragem, mas também de grande desenvoltura, em época na qual a aviação não oferecia àqueles que enfrentavam os elementos, protegidos pela cabine que associamos aos aviões daquele tempo, muita segurança, sobretudo na parte instrumental.
                 A fuselagem tinha forma cilíndrica, mais acentuada então pelas acanhadas dimensões do avião. As aeronaves , por considerações de espaço, nos parecem hoje diminutas, mas o seu aproveitamento era ditado pela aerodinâmica, e pelas milhas adicionais que proporcionaria, através de tanques de combustível que dessem à aeronave a garantia de pouso seguro.
                  Os pilotos dos anos trinta e quarenta, nós os vislumbramos através das vidraças arqueadas da angusta cabine, que parecem continuar a fuselagem, com vidros e hastes metálicas encurvadas, ambos como que plantados no bojo do avião - o corpo do cilindro - de que os gomos arqueados, com suas embaçadas viseiras,  entremostram para o olhar inquieto do jovem que se transporta àqueles acanhados espaços, e que busca entrever, ou até mesmo adivinhar, as feições da aviadora, com o cachecol de lã, e o primitivo boné, com o couro de suas tiras de proteção. Se bem alto a própria indômita coragem se desenha nessas etéreas paragens, aonde o esgarçado vapor de esparsas nuvens surge como estria da travessia que brilha heróica e resplendente no olhar nervoso da criança, aquelas bruscas visões do modesto, acanhado modelo de então com a fugaz cercania de que faz partícipe o intenso, ainda que imaginário aviador,  para quem a aeronáutica da atualidade será o oposto, como se se quisesse confrontar os monstros hodiernos, que são aéreos computadores, nos quais  a presença mesmo imaginária do comandante há de ser quase um traço, diante da heróica arte dos anos trinta do século passado, em que a máquina, por mais falha e frágil que fosse, será sempre testemunho da humana coragem, em que a chamada fúria dos elementos, as nuvens - onde Zeus se esconde, para fabricar raios e trovões, o vento inconstante, volúvel mesmo, surgem não como a paisagem distante das máquinas voadoras computerizadas, mas como se o ar, o vento e a nuvem possam ser da aventura companheiros, mas também o espaço, ainda que misterioso e, no entanto, próximo, feito de surpresas, e sobretudo de desafios, que tanto os atravessa, quanto se desvelam na maravilhosa cercania que Icaro terá sentido.  
                   Os curtas de então, que os cinemas  ofertavam aos ávidos espectadores das matinées - que eram de tarde - servidos como espécie de aperitivo ao público infanto-juvenil, e portanto com a  excitação do tempo pré-tevê.   Eram imagens de mundo heróico, onde víamos cenas coruscantes na própria fugacidade, em que o público se divertia com as desgraças de caças que mergulhavam para sempre, ou então com os feitos de Amelia Earhart, que nos acena da própria cabine armada do sorriso da celebridade, enquanto o voice-over do locutor nos proclama quem nos dá o ar da própria graça.
                   Não me esqueceram as imagens deste sorriso, que nos chegava de longe, quem sabe com leve adeusinho, com sempre por trás a voz fleumática do speaker, a traçar-lhes grandes feitos de resto já conhecidos, na imensidão do Pacífico, em que rondam os imaginários azes do outro lado, que eram os sempre sorridentes aviadores dos temíveis Zero que apareciam sempre naquela despojada, inaudita e imensa vizinhança do Pacífico.  E a criançada torcia por Amelia, a brava aviadora americana, sem saber que ela não se metia em combates aéreos, mas sim nos perigosos voos solitários de observação e descoberta, porque naqueles tempos heróicos tudo parecia por descobrir, enquanto, sem o saber, o mundo deslizava para a grande, talvez final, conflagração.

( Fontes: O Estado de S. Paulo; a memória da criança.)

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