A aviadora Amelia Earhart foi por muito
tempo não só exemplo de coragem, mas também de grande desenvoltura, em época na
qual a aviação não oferecia àqueles que enfrentavam os elementos, protegidos
pela cabine que associamos aos aviões daquele tempo, muita segurança, sobretudo
na parte instrumental.
A fuselagem tinha forma
cilíndrica, mais acentuada então pelas acanhadas dimensões do avião. As
aeronaves , por considerações de espaço, nos parecem hoje diminutas, mas o seu
aproveitamento era ditado pela aerodinâmica, e pelas milhas adicionais que
proporcionaria, através de tanques de combustível que dessem à aeronave a
garantia de pouso seguro.
Os pilotos dos anos trinta e
quarenta, nós os vislumbramos através das vidraças arqueadas da angusta cabine,
que parecem continuar a fuselagem, com vidros e hastes metálicas encurvadas,
ambos como que plantados no bojo do avião - o corpo do cilindro - de que os
gomos arqueados, com suas embaçadas viseiras,
entremostram para o olhar inquieto do jovem que se transporta àqueles
acanhados espaços, e que busca entrever, ou até mesmo adivinhar, as feições da
aviadora, com o cachecol de lã, e o
primitivo boné, com o couro de suas tiras de proteção. Se bem alto a própria
indômita coragem se desenha nessas etéreas paragens, aonde o esgarçado vapor de
esparsas nuvens surge como estria da travessia que brilha heróica e resplendente
no olhar nervoso da criança, aquelas bruscas visões do modesto, acanhado modelo
de então com a fugaz cercania de que faz partícipe o intenso, ainda que
imaginário aviador, para quem a aeronáutica
da atualidade será o oposto, como se se quisesse confrontar os monstros
hodiernos, que são aéreos computadores, nos quais a presença mesmo imaginária do comandante há
de ser quase um traço, diante da heróica arte dos anos trinta do século passado,
em que a máquina, por mais falha e frágil que fosse, será sempre testemunho da
humana coragem, em que a chamada fúria dos elementos, as nuvens - onde Zeus se
esconde, para fabricar raios e trovões, o vento inconstante, volúvel mesmo, surgem não como a
paisagem distante das máquinas voadoras computerizadas, mas como se o ar, o
vento e a nuvem possam ser da aventura companheiros, mas também o espaço, ainda
que misterioso e, no entanto, próximo, feito de surpresas, e sobretudo de
desafios, que tanto os atravessa, quanto se desvelam na maravilhosa cercania
que Icaro terá sentido.
Os curtas de então, que os cinemas ofertavam aos ávidos espectadores das matinées - que eram de tarde - servidos como
espécie de aperitivo ao público infanto-juvenil, e portanto com a excitação do tempo pré-tevê. Eram
imagens de mundo heróico, onde víamos cenas coruscantes na própria fugacidade,
em que o público se divertia com as desgraças de caças que mergulhavam para
sempre, ou então com os feitos de Amelia Earhart, que nos acena da própria
cabine armada do sorriso da celebridade, enquanto o voice-over do locutor nos proclama quem nos dá o ar da própria
graça.
Não me esqueceram as imagens
deste sorriso, que nos chegava de longe, quem sabe com leve adeusinho, com
sempre por trás a voz fleumática do speaker,
a traçar-lhes grandes feitos de resto já conhecidos, na imensidão do Pacífico, em
que rondam os imaginários azes do outro lado, que eram os sempre sorridentes
aviadores dos temíveis Zero que apareciam
sempre naquela despojada, inaudita e imensa vizinhança do Pacífico. E a criançada torcia por Amelia, a brava
aviadora americana, sem saber que ela não se metia em combates aéreos, mas sim
nos perigosos voos solitários de observação e descoberta, porque naqueles
tempos heróicos tudo parecia por descobrir, enquanto, sem o saber, o mundo
deslizava para a grande, talvez final, conflagração.
(
Fontes: O Estado de S.
Paulo; a memória da criança.)
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