domingo, 16 de julho de 2017

Das cinzas de Liu Xiaobo



       Será a China um monólito do poder absoluto?  Depois da época de Hu Jintao que, mesmo com a sua alegada moderação, esteve por trás da repressão a Liu, sua condenação a onze anos de cárcere fechado, em província atrasada e interiorana do Império do Meio, e depois num autêntico lazareto, mantido não por peculiares motivos conservacionistas, mas com o propósito de infligir penúria e padecimento àqueles miseráveis que para lá fossem mandados.
       Liu Xiaobo, que era pessoa inteligente e otimista, acreditava na possibilidade de convencer o próximo, mesmo aquele envolvido com o poder do partido, que na RPC é mantido como uma espécie de guardião dos princípio e, sobretudo, do poder do Partido Comunista Chinês. Se  desde Deng Xiaoping, por influência de seu auxiliar direto o Primeiro Ministro Zhao Ziyang, o terror dos tempos de Mao Zedong parecia afastado, e  a política parecia encaminhar-se para uma moderação ocidental.
        O próprio Zhao defendia, quando no poder, a democracia como instrumento de relevo, sobretudo no controle da corrupção. No jogo de dados da História, quis a cruel deusa Fortuna que Zhao estivesse ausente da China, em viagem a Coreia do Norte. Li Peng, na ausência de Zhao - que defendia um começo de liberação, dentro do esforço de combater a corrupção - logrou convencer Deng Xiaoping a soltar um artigo em  que velho líder condenava o movimento da Praça Tiananmen. A falta de Zhao, então em missão em PiongYang, encaixou-se na cabala conservadora de Li Peng, e quando ele voltou Deng já se irritara com a provocação de sua mensagem, que aumentara a tensão entre os estudantes.
         Essa manobra palaciana levaria a melhor sobre os propósitos de Zhao. Ao recusar-se a determinar as medidas de repressão, Zhao irritou o líder Deng, e a partir desse momento, a vitória dos conservadores de Li Peng foi total, conseguindo que o perigo da democracia - moderada e sob controle, segundo Zhao Ziyang prometera a Deng Xiaoping - havia sido transformado no bicho-papão das longas noites da repressão.  Seguiu-se o massacre dos pobres estudantes em Tiananmen, a vitória dos asnos conservadores de Li Peng e a perda de parte de Zhao de todas as posições que mantinha até então. Retirou-se para a sua casa em Beijing, de onde só sairia morto, em enterro secreto (por temor do poderoso de então de manifestações populares), que ocorreu sem que o povão soubesse em meados de janeiro de 2005.
           Zhao Ziyang é um desses grandes perdedores, que morreu com a popularidade de quem não temia a democracia. Nisso não difere da Imperatriz Ci Xi, que, ao morrer em 1908, pensara havê-la deixado implantada.     
            Todas as testemunhas fidedignas que conheceram Liu Xiaobo falam sobre a sua firmeza, serena confiança e ... otimismo.
            Ele agora está longe dos servos do Estado chinês. De todas as maldades que lhe fizeram depois de morto, a que mais me impressionou, pela própria mesquinharia, foi a de ter destinado as cinzas de Liu Xiaobo ao mar.
             É a reação típica dos tiranos e de seus acólitos. Como para eles, enquanto o tirano de plantão, Xi Jinping, estiver vivo e pimpante, eles se sentirão com a segurança dos miseráveis, daqueles que não tem problemas éticos, nem inquietudes com os seus gestos repugnantes.
             Se não teria a ingenuidade de pensar que os de esquerda - aqueles que internalizam a mensagem de algum guru também de esquerda, e por isso se sentem à vontade - terão eventuais problemas de consciência, nisso eles estão unidos com os espécimes da direita, que podem ir até mais longe na sua pusilânime mesquinhez.
             Como Zhao, que acreditava na democracia para a higiênica tarefa de expor à execração pública as tristes figuras da ditadura comunista - e pasmem! esses indivíduos não hão de variar muito se nascerem em regime democrático, pois ideologia e caráter, tomadas as devidas precauções, não costumam ser cartas de apresentação seguras seja de bom comportamento, seja de bom caráter  - não teve muita sorte na vida, por estar ausente - e logo na Coreia do Norte! - quando a China e a sua juventude mais precisavam de um bom caráter no entorno de  Deng Xiaoping. ..
              Liu Xiaobo - a quem decerto sequer deixariam ler o livro do Marquês de Beccaria "Dos delitos e das Penas", este fanal do iluminismo na Itália - não creio que se importaria muito com a vileza do gesto soprado a um ânimo fraco - não esqueçam nunca que fantasma sabe bem para quem aparecer - de desfazer-se das suas cinzas. O terror dessas criaturas da obscuridade e da vilania extrema é, eventualmente, desagradar ou perder um pedacinho de seu imaginário prestígio diante da Besta no poder, que julga tudo saber, mas que sofre de aguda neuropatia, pois lhe teme a força depois da morte.
                Não direi aqui que Xi Jinping é espírita. Na verdade, todos sabemos dos seus estudos de Marx, Engel, e em especial de Mao Zedong, e ele não desejaria desagradá-los ao permitir cultos supersticiosos...
                 Mas no entanto - e é aí que a vaca perde o bezerro e vai para o brejo - ele tampouco aprecia esses templos que cultuam os espíritos e os sábios.
                 Quem estará rindo - ou melhor, sorrindo - disso tudo é o nosso herói Liu Xiaobo. A ele inquieta somente não o que essas almas pobres e ignaras pensam haver feito com as suas cinzas, mas sim a situação de sua querida esposa Liu Xia, que tem de privar com esses tipos, enquanto eles pensam em o que fazer da situação.
                 Mofinos que são, o seu vôo é baixo. Deixem que torçam as mãos e passem os dias temendo a chegada das figuras patibulares que nos seus olhos purulentos desejam entrever-lhe a fisionomia e, se possível, se o mal que eles lhe fizeram está avançando. 
                Talvez, quem sabe, eles recebam à noite a visita inesperada de um estranho pesadelo. É um veículo puxado a muares em que estão sentados hieraticamente dois personagens para eles estranhíssimos. Um jovem, com os trajes escuros do exílio, o nariz adunco, as mãos magras que seguram as rédeas. Atrás dele, outra estranha figura, que por vezes, se consultado pelo companheiro, lhe dá indicações seguras daquelas soturnas, ominosas paragens.
                  No quadro inteiro, tais visões patéticas - uma até vindo dos bancos do alto estudo - elas lhes vêm sussurrar em palavras antigas da sua triste sorte...


( Fonte: Dante, Commedia, Inferno )

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