A explosão da rebelião espontânea de Março de 2008 em Lhasa resultou do ressentimento da população autóctone do Tibete, diante da invasão chinesa. Causa precípua desse fenômeno é a continuidade do processo de ‘absorção’ do vasto Tibete, um país independente quando os comunistas chineses o invadiram em 1959, forçando a fuga para a Índia do 14º Dalai Lama, onde constituíu em Dharansala o governo no exílio.
A apropriação do Tibete não difere de colonizações análogas em outras regiões realizadas por Beijing, não fosse pela grande extensão da área, as dificuldades físicas encontradas, e a presença de população nativa, estreitamente ligada à liderança do Dalai Lama, e com arraigada consciência da própria nacionalidade.
Como na fronteira oriental do Império do Meio, em outra região autônoma, onde se acha a etnia Uigur, no Xinjiang, a RPC procura consolidar o seu domínio através do recurso maciço à etnia Han, que é a majoritária na China. A vinda ininterrupta de contingentes de forasteiros, que necessariamente prejudicam a população nativa quanto às oportunidades de trabalho, tende a gerar tensões demográficas. Dessarte, os choques dos uigures contra os Han também tendem a ocorrer no Tibete, com a exasperação da gente do lugar – no caso os tibetanos – diante do incessante afluxo da etnia chinesa, que constitui uma espécie de infantaria da ocupação por Beijing de sua terra ancestral, o Tibete.
Essa ocupação, que se processa a partir da conquista, se manifesta em diversas formas. Pode efetuar-se por migrantes agricultores, a quem os tibetanos pobres, já endividados, são constrangidos a arrendar a terra. Dispondo de maiores meios e insumos agrícolas, os lavradores da etnia Han podem plantar diversos variedades de produtos (os tibetanos só cultivam nesse solo a cevada). Dentro desse peculiar manejamento do território, cerca de 1.2 milhão de tibetanos foram deslocados para ‘confortáveis conjuntos residenciais’, enquanto os migrantes chineses se assentam nos campos da região, com o escopo precípuo de produzir cash crops[1] destinadas ao mercado do Império do Meio.
A implantação deste esquema de colonização – que só difere do das antigas colônias das metrópoles pela contiguidade territorial – teve a sua implementação decerto agilizada, eis que o acesso e superação da grande barreira do Himalaia se tornaram menos problemáticos após vencido o magno desafio, em função de enormes obras de engenharia e custosos investimentos para a construção de estrada de ferro que visa a promover a integrar a chamada região autônoma do Tibete na malha ferroviária chinesa.
Por outro lado, nas principais cidades, a capital Lhasa e Shigatse, em diversos bairros, nota-se a predominância demográfica dos invasores Han. A esse respeito, a prática chinesa é de não enfatizar a presença Han. De acordo com as suas estatísticas, 95% da população na região seria de naturais tibetanos.Assim, em um universo de 2.9 milhões de habitantes, haveria grande maioria autóctone. Semelha difícil acreditar nesse cenário oficial, dado o contínuo fluxo da migração Han. Como a política de Beijing é a de não registrar os supostos migrantes Han, para os observadores externos resulta quase impossível determinar as reais parcelas de que se compõem as atuais comunidades que vivem no Tibete.
A própria revolta de março de 2008, pela extensão do dano provocado aos ocupantes chineses, mostra a contrario sensu, a pouca confiabilidade das ‘estatísticas’ do Império. A população tibetana queimou e pilhou centenas de negócios de propriedade dos grupos étnicos chineses Han e Hui. Ainda segundo os dados fornecidos a posteriori pelas autoridades chinesas, haveria dezenove vítimas fatais, a maior parte da etnia Han.
Pelo caráter exótico, pelos mosteiros budistas, e pela própria imagem da região, a mais alta da Terra, o Tibete poderia constituir uma área turística importante. No entanto, o ‘turismo’consentido privilegia as correntes migratórias Han. Como todo domínio colonial, a presença de Beijing se fundamenta na força. Para aqueles poucos que logram autorização para visitar Lhasa e áreas do Tibete, basta visita ao mercado central da cidade – o Barkhor -, para que se tenha noção da realidade militar da dominação chinesa. Em torno do Barkhor, soldados em uniforme de choque, da etnia Han, marcham na direção contrária a do relógio em volta do templo Jokhang, que é objeto de visitação constante de peregrinos tibetanos.
A par disso, para evitar surpresas e também com intúito diassusório, atiradores de elite se localizam nos telhados e tetos próximos do templo.
De visu, a literatura oficialista e a pretensa realidade que aspira difundir, da mesma forma dos sólidos, também tende a dissolver-se no ar de uma contemplação sem intermediários.
A resistência da população tibetana – excetuados os episódios de sua extravasão, quando o incoercível ressentimento contra o invasor vence as peias do medo e da suposta conveniência – se manifesta em geral de forma passíva e clandestina. Muitos tibetanos levam no pescoço e em escapulários a imagem do líder carismático, o Dalai Lama, cuja legitimidade, provada de tantas formas, se afigura demasiada para os anônimos burocratas de governo e partido em Beijing. Por isso, o Império do Meio proíbe com drásticas penas a exibição de retratos do detestado – e temido – líder tibetano.
A despeito da flexibilidade do Dalai Lama – que não mais defende a independência e sim a autonomia do Tibete -, os governantes de turno da RPC se empenham na luta inglória de ameaçar autoridades e países que devam receber a visita do Prêmio Nobel tibetano. Dado o frágil caráter dos argumentos chineses, a grande maioria opta por abrir-lhe as portas. Aqueles poucos que porventura fraquejam, ao ceder às instâncias de Beijing, prestam involuntariamente um melancólico testemunho acerca da própria soberania.
Sem embargo, a figura do Dalai Lama, a encarnação da legitimidade e da nacionalidade do povo tibetano, é um desafio permanente ao poder e à força bruta da China. Deparar a teimosa resistência da população, malgrado as diversas formas de concreta manifestação da presença imperial chinesa, é um exemplo vivo e incômodo de que a liberdade pode sobreviver nas condições mais adversas, eis que, apesar de tudo, a autocracia não logra sufocá-la no alento e na mente das populações aparentemente subjugadas.
( Fonte: International Herald Tribune )
[1] Colheitas comerciais
terça-feira, 10 de agosto de 2010
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