O bicho homem é realmente difícil de entender. O que ele está fazendo com Gaia não é capítulo à parte na história das relações humanas com o meio ambiente.
No limiar do século XXI da civilização sino-ocidental não se afigura mais possível desconhecer o caráter entranhado e intrínseco da presença do homem no planeta Terra.
Quais são as motivações do autodenominado homo sapiens ? Se conhecimento ele entesoura e desenvolve, o próprio saber se assinala pelo vetor do egoismo supremacista, com a sua índole predatória e imediatista.
Desde que o bicho homem saíu da caverna – e não daquela metafórica e enganosa ideada por Platão – e sim dos primitivos espaços em que se adentrara na busca da proteção, sua obra tem sido a da construção destruidora. Para verificar-se tal fato, sequer se carece recorrer aos mudos sinais da arqueologia.
Lendo os escritores da Antiguidade, deparamos na Europa animais ferozes como ursos, leões, javalis, leopardos que hoje, nos atuais países, só são visíveis no arremedo dos chamados jardins zoológicos. Do mesmo modo, as densas florestas, pululantes de gnomos, daimones e outros espíritos, cederam o espaço à monotonia dos prados e das pastagens.
Um velho amigo deixou-nos um livro que a mediocridade de um diretor acadêmico recusou a publicação. Discorria sobre a famosa frase de Aristóteles de que o homem é um animal político. E nos mostrava que ela não tinha sentido.
Dentre as razões alinhadas, me seja permitido agregar mais uma. Pois a pólis (cidade), o homem desde cedo a tornou incompatível com Gaia, a mãe-natureza. Se os efeitos da ação deletéria tardaram a aparecer em escalas comparáveis ao paroxismo presente, devemos agradecer menos à moderação, do que à incipiente tecnologia da conquista do espaço, assim como às regulatórias deficiências da ciência hipocrática, cujos progressos a partir do século XIX foram despojando os esculápios das vestes negras e do xamanismo empulhador.
Na segunda metade do século XX e neste século XXI, mãe-natureza resolveu, à falta de outros argumentos, desenganar-nos de sua bucólica placidez e de todos os estereótipos da geografia humana. Por uma conjunção de múltiplos fatores adversos – de que o causador é um só – o habitat dos ursos polares se está derretendo, geleiras imensas se desprendem da Groenlândia, a Antártida começa a encolher para a sua dimensão física, a idílica terra brasileira é apresentada aos ciclones e tornados, os Katrina e congêneres se arreganham na sua sanha devastadora, outros furacões, além da riqueza da Flórida, maltratam terras miseráveis como o Haiti, inundações nunca antes vistas se arrojam sobre o Paquistão, incêndios calcinam os arredores de Moscou.
Não se vá dizer que o Brasil esteja fazendo má figura, nesse contexto. Já que as florestas da Europa, da América Setentrional e da Ásia são hoje, em grande parte, nostálgica história, serão necessários outros motivos para o rigor preservacionista de europeus e americanos. Como diz o Evangelho, se censura com mais facilidade a farpa no olho de outrem, que a trava no seu. Para defendermos Chico Mendes e o seu legado, não carecemos dessas conversões tardias.
Se precisávamos de um espelho para retratar a má-fé e o oportunismo, mal-encobertos pelos andrajos de túnicas penitentes, a Conferência de Copenhague, com as expectativas levantadas e o deplorável espetáculo de um discurso irresponsável, nos forneceu em abundância. Por faltar mais do que à palavra, ao compromisso, por módico que seja, com a Humanidade, os ali presentes inscreveram os próprios nomes em caracteres mais fundos do que o mármore ático.
Como explicar hoje o empenho de Obama, se até a promessa de Copenhague, por mirrada que fosse, hoje jaz nas gavetas do Senado americano, sacrificada a supostos maus ventos políticos e aos lobistas do carvão, este inefável combustível poluidor dos Estados Unidos ? E não se vá dizer que a China, com as usinas a carvão fique atrás.
O estadista Lula, com o seu verbo fácil, igualmente cativou os delegados, com as suas promessas na faixa futura das emissões de carbono. A maioria ali presente ignorava toda a sua coerência na área ambiental – da abertura das cavernas não aos espeleólogos mas à exploração mineradora, da MP da Grilagem, das sucessivas e cínicas suspensões das multas do Ibama aos desmatadores – e então os aplausos ressoaram inda mais atroadores.
Será que a vez é agora do Brasil ? Para combater a apatia oficial, e o progressivo abate da solitária e magnífica hiléia amazônica, a última dos mohicanos na macabra marcha da sistemática devastação dos recursos naturais, desde muito se optou por medir o avanço dessa destruição não pelo retrato veraz das árvores ceifadas, mas pelo espelho ilusório de percentuais a registrarem uma alegada redução no ritmo incessante da progressão das motosserras e das queimadas? Ao invés de afirmar que tal e tal membro foi amputado, piedosamente se assevera que o corte foi menor, deixando um cotoco, um aleijume maior !
O Brasil, este gigante outrora adormecido, pode mostrar outras chagas, outros atentados. Nossa terra tem dado nesse imenso particular momentosas lições ao mundo. A Europa – e por que não os Estados Unidos – não devem apenas curvar-se diante de nós. Muitos julgam que isso não basta, e que a prostração idólatra – que custou a Alexandre Magno uma conspirata[1] – será agora o modelo da vez.
A nossa terra continua a surpreender-nos. Tomem, v.g., os fenômenos das inundações, dos deslizamentos, dos desabamentos e das avalanches. Em todos eles, o Brasil está na linha de frente, e não lhe faltam exemplos. Vejam Santa Catarina. As repetidas inundações, os deslizamentos de terra, e a consequente devastação representariam para ela um aprendizado cruel mas eficaz, quanto à serventia das medidas ambientais ? Errado ! A sua Assembleia Legislativa resolveu, ao contrário, radicalizar no combate ecológico, aprovando um código estadual – que seria inconstitucional, se o STF não demorasse tanto em pronunciar-se – o qual facilitará ainda mais esses desastres ambientais que tanto comovem as autoridades.
O que pode explicar a estupidez humana, que imita os lemingues na sua monótona carreira para o precípio ? É uma poção que nem Medéia ousaria preparar, com os seus ingredientes de cobiça desmedida, de egoismo sem limites, de robusto espírito predatório, com sólida base de infinita burrice, tudo isso condimentado com liberais pitadas de cinismo.
[1] A conjura contra a proskínesis (prostração adoratória) , com que Alexandre se mostrava partidário do modelo oriental, próprio da conquistada Pérsia, e não daquele prevalente na Macedônia, em que os seus companheiros o tratavam como o primeiro entre iguais. Vítima dessa conspiração seria Callisthenes, sobrinho de Aristóteles, cruelmente executado por inanição, exposto em gaiola de ferro.
segunda-feira, 16 de agosto de 2010
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