segunda-feira, 23 de agosto de 2010

De um Inusitado Projeto

A princípio, é difícil acreditar na veracidade da notícia. No entanto, Elio Gaspari é um jornalista respeitado e respeitável, com currículo que dispensa apresentações. Por isso, ainda que consternado, não tenho alternativa senão tratar a questão, não no como fato consumado – eis que felizmente não o é – mas na qualidade de iniciativa sem o fundamento seja da Constituição, seja da correta disposição das matérias administrativas e financeiras da União.
Como Elio Gaspari nos informa, “o presidente do Supremo Tribunal Federal,Cezar Peluso, e o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, encaminharam ao Congresso projetos de lei que lhes transferem a tarefa de fixar os vencimentos dos servidores sob suas jurisdições. Atualmente, os reajustes salariais do Supremo e do Ministério Público dependem de aprovação do Congresso, como ocorre com o Orçamento da União.”
Mesmo nos tempos que correm, em que o egoismo corporativista sói ser a regra - a ponto de haver induzido no passado os juízes a entrarem em greve e a deputados declararem que se lixam para a opinião pública – há de convir-se que não é todo dia que se depara com disposição de tal gênero, decidida aparentemente em concerto, respectivamente, pelo atuais chefes de nossa Corte Suprema e de nosso Ministério Público, que ocupam as suas altas funções há relativamente pouco tempo.
A alvitrada providência, sob inúmeras facetas, algumas delas constrangedoras,
não é sensata, nem conforme o ordenamento constitucional, nem tampouco é adequada.
Constrange, de início, que tal medida, tão manifestamente pro domo sua, seja solicitada de um Congresso com a legislatura em fim de mandato. Não é decerto o momento de considerar seja ela de conformidade ao mandamento constitucional, seja da sua conveniência política, administrativa e financeira.
Não há muito se tomou ciência de que os Ministros do Supremo reivindicam nova atualização salarial. Como a sua alta remuneração – que no país das incongruências supera inclusive a do Presidente da República, também cognominado o Primeiro Magistrado da Nação – havia sido atualizada há pouco, provoca alguma espécie este zelo em obter nova adequação salarial. Afinal, graças ao Plano Real e às sucessivas administrações fazendárias, a inflação é coisa do passado. Se fora retrato na parede, já estaria desbotado como aquelas velhas memórias que não estão no referencial das novas gerações.
Como percebem polpudos salários, a que se agregam tantos suplementos, para tão altos personagens conviria manter a respeito a atitude sobranceira de seus maiores, na história republicana.
Do que o jornalista Elio Gaspari nos vem chamar a atenção constitui, no entanto, questão ainda mais grave. O Presidente da Corte Suprema e o Chefe do Ministério Público, que é bom lembrar, tem aquele como honroso e sumo encargo a defesa da Carta constitucional de 5 de outubro de 1988, e este o relevante dever da fiscalia-mor – um dos pontos mais salientes da Constituição Cidadã. Carecem, portanto, de repensar essa iniciativa.
Senão vejamos. Do prisma da ordenação dos poderes, cabe ao Legislativo considerar e aprovar as remunerações dos funcionários, altos e baixos, dos três Poderes, inclusive do Presidente da República. Esta é norma corriqueira em direito constitucional. A Constituição Americana, com o seu sistema dos checks and balances, a consagra, e não creio que haja país civilizado que, no delicado campo da remuneração, opte por outro caminho. No fim de contas, vivemos em regime republicano, em que, por definição, o Povo é soberano. E com todos os seus defeitos, não há Poder que mais dependa e se relacione com o Povo do que o Legislativo.
O corporativismo, este egoismo de classe, será sempre pernicioso, na medida em que se aliena da população em geral, e não mais reflete os anseios da comunidade. Entre esses desejos, haverá maior do que a igualdade perante a lei ?
Antes de passarmos a outro domínio, convém frisar que a norma de que os estipêndios dos magistrados sejam determinados pelo Legislativo não corresponde apenas ao bom senso, mas também à experiência histórica. Se se transferir para o próprio Judiciário a competência de legislar sobre o respectivo salário, estaremos introduzindo uma hidra de ascendência polonesa no nosso ordenamento constitucional. Desejamos, entre outras coisas, ao promover esta anomia, reintroduzir pela porta dos fundos o monstro da inflação, com a sua farra de indexações ?
E que não se esqueça que os aumentos salariais dos ministros do Supremo estão no topo de uma cascata infindável, que vai percorrer toda a escala do Poder Judiciário, com as previsíveis consequências.
Do alto devem vir os bons exemplos. Hoje em dia persistem muitos reclamos contra a morosidade e a excessiva burocracia no Judiciário. Se por vezes assistimos a céleres intervenções, essa aparente rapidez não concerne, em geral, ao cidadão comum. É sabido que muitas procrastinações se devem aos códigos processuais obsoletos, adrede utilizados por hábeis advogados para estender muito além do que caberia ações que mereceriam terminar em prazos razoáveis, para que, por meio de uma demora despropositada, contrariem ao próprio objetivo maior da Justiça. É de augurar-se que se possa em breve dispor de novos códigos, para pôr fim a tais abusos.
Por falar em aplicação da Justiça – e respeito à Constituição – que me seja facultado, à maneira de Catão, que a inaceitável censura ao Estado de São Paulo, estabelecida há mais de ano, seja tornada írrita sem mais demora.

Senhor Presidente Cezar Peluso e Senhor Procurador-Geral da República Roberto Gurgel,
a bem da boa norma constitucional, venho mui respeitosamente encarecer-lhes se dignem reconsiderar a iniciativa do projeto encaminhado ao Congresso, em que solicitam lhes seja transferida a tarefa de fixar os vencimentos dos servidores sob suas jurisdições.
Em assim procedendo, Vossas Excelências cresceriam no respeito da Nação brasileira.


( Fonte: Folha de S. Paulo )

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