A revolução cubana foi vista nos seus albores como um sinal de novos tempos na América Latina. Com a guerrilha na Sierra Maestra e a queda do ditador Fulgencio Baptista, em 1º de janeiro de 1959, representou para muitos uma promessa de justiça social, econômica e política, a par de revolução diferente dos anteriores golpes de estado em que o povo representava um comparsa retórico. Antes, os pronunciamientos se faziam na verdade para que nada mudasse, exceto a carantonha do caudilho de turno, e a camarilha que o cercava.
Epitomizada por duas figuras carismáticas, Fidel Castro e Che Guevara, a própria dinâmica da revolução, com a sua crescente radicalização, a dupla face de Jano perduraria, e apenas simbolicamente, até a segunda metade dos anos sessenta. Che Guevara sobreviveria na imagem dos posters inigualáveis, com a sua personalidade mítica e romântica, o avatar da eterna promessa da revolução egualitária e generosa, mantido pela sua morte prematura, exposta em esquálido casebre, selando na sua eterna juventude a aliança perene com gerações sucessivas de jovens empenhados em criar uma sociedade justa.
Para o Comandante Máximo restou a dádiva ambígua das Parcas de sobreviver a ataques anônimos de assassinos mercenários, e levar avante, na progressão nunca monótona das décadas, tanto a mística de uma mensagem revolucionária para o Continente, quanto a faina diuturna de navegar por mares sempre cambiantes, seja pelas curtas bonanças, seja pelos contínuos desafios que soem visitar os caudilhos longevos.
Permanente apenas a cercania da superpotência e o seu embargo. No limiar dos noventa, Cuba arrosta o impensável. A União Soviética, que, com o seu sufocante abraço, permitira ao regime a própria sobrevivência, ora se desfaz, em episódio inaudito. Com enorme sacrifício, Fidel e o povo cubano venceriam a provação.
Para tanto, o outrora orgulhoso Lider Máximo teve de beber do cálice amargo das concessões e dos recuos. Recebeu, inclusive, ansioso e compungido a visita do Sumo Pontífice João Paulo II, o Papa Wojtyla que, por sua liderança e exemplo, vencera o embate com o comunismo ateu da Europa do Leste.
Para envelhecer no poder, Fidel terá perdido anéis, mas nas suas concessões privilegiou o acessório sobre a essência. Por isso, o jovem revolucionário da Sierra Maestra tornou-se o gerontocrata de um esquema de mando, que se não mais empolga o jovem, nas suas fossilizadas estruturas se vai assemelhando sempre mais a todas as ditaduras no seu medo do novo e do alternativo. Por isso, os velhos gerarcas, como Muammar al-Gaddafi, Kim Jong-il e o próprio Fidel, ora encarnado pelo irmão Raul, são patéticos elementais que o tempo, com sua chã crueldade, destruíu.
Existem aqueles que ainda os visitam e elogiam. Sem falar do proto-ditador Hugo Chávez, que financia a penúria da ilha com os minguantes recursos da monocultura petrolífera, e se prodiga em louvaminhas e beija-mãos, há outros, como o Presidente Rafael Correa, do Equador, que não trepida em falar-nos do “orgulho latino-americano”que ele sente ao assistir à permanente revolução cubana, a qual “assegurou o restabelecimento dos direitos humanos para todos os homens e mulheres de Cuba”.
Em momento infeliz, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e seu acólito assessor para assuntos latino-americanos, foi prestar sua homenagem ao líder convalescente e a seu irmão Raul. Enquanto morria em alguma enxovia o dissidente herói Orlando Zapata Tamayo, em greve de fome de protesto, Lula perdeu na ocasião duas preciosas oportunidades: não estar na companhia dos tiranos e não ter falado as constrangedoras sandices de que sua língua, inculta e solta, muitas vezes envergonha o homem brasileiro.
Cuba é hoje objeto de maravilha às avessas. Os anos impiedosos ensinaram aos irmãos Castro como sobreviver enquanto regime. Não podem jactar-se sozinhos dessa obra inglória. Os fautores do embargo, com a sua cega exação, tem direito a reivindicar a sua parte. Mas não se pode esquecer que o embargo tem sido aliado perverso do Comandante e do chefe atual. Muitas ignomínias e muitas injustiças encontram arrimo nessa infernal criatura, que, como gigantesca serpente, tolhe os movimentos e estiola tantas atividades na ilha caribenha.
A organização não-governamental Human Rights Watch logrou percorreu desapercebida Havana e suas províncias. Encontrou gente amedrontada e gente corajosa. Na indigência em que vive o povo cubano, cercado pelos alcaguetes dos ubiquos comitês de vizinhança, ou até, se preciso for, pela violência dos oi polloi [1] a apedrejar-lhes as moradas, se porventura suspeitos de conluios democráticos.
No presente, o regime de Raul Castro tenta obter maiores facilidades comerciais através do afrouxamento do embargo da União Europeia, aplicado para forçar uma abertura democrática, inda que modesta, do governo comunista. Seguindo o exemplo de Fidel, o irmão mais moço confia na mágica do tokenismo. Em outras palavras, são concessões pontuais[2] e marginais. Quer colher vantagens comerciais com medidas simbólicas que o ministro da Czarina Catarina II, o príncipe Poniatowski – que deu à posteridade a falsa prosperidade das chamadas Vilas Poniatowski – decerto aprovaria.
Não sou contra a recente negociação entabulada pela Igreja, com o apoio do governo Zapatero, na Espanha, de que pode resultar a libertação de 52 dissidentes cubanos (até agora foram libertos e mandados para a Espanha 23 presos políticos). Toda a minoração do sofrimento injusto, se é digna de encômio, não deve ser confundida com a panaceia, em que os diarcas cubanos gostariam de transformá-la. Assim como a caridade não resolve o problema da pobreza e a má-distribuiçãao da riqueza, de igual modo esse conta-gotas liberatório, se motivar uma abertura desmedida nos controles da União Europeia, logrará apenas o que almejam os ditadores: exportar sem peias, enquanto mantêm cheias as respectivas masmorras.
A descrição dos procedimentos da ditadura comunista exigiria um espaço que, se lhe ressaltaria a magnitude e a capilaridade dos instrumentos utilizados pelo regime, não se coadunaria com os parâmetros deste artigo.
Limito-me, por conseguinte, a alguns tópicos da matéria “Os heróis de Cuba”, publicada por The New York Review of Books [3]. A internet praticamente não existe em Cuba. A famosa blogueira Yoani Sánchez é quase desconhecida na sua terra, porque o cubano do povo, que não tem acesso à internet, nunca ouviu falar dela, apesar de ter sido designada no estrangeiro como uma das cem pessoas mais influentes no mundo.
Ao assumir do irmão enfermo, em junho de 2006, as rédeas do poder, Raul Castro dera esperanças de que poderia haver uma perestroika na ilha. Dessarte, o novo líder patrocinou foros públicos supostamente destinados a encorajar a crítica a políticas do governo [4]. De forma ainda mais animadora, Raul Castro assinou dois tratados internacionais sobre direitos humanos. Essa suposta primavera cubana não levou a nada, pois o regime, apesar dos foros, permaneceu fechado, e os dois tratados, posto que assinados, nunca foram ratificados.
Importa, outrossim, assinalar que os dissidentes são amiúde referidos como se fossem um grupo uno e coordenado. Tal não corresponde à realidade. A comunidade dissidente é assim cognominada por atividades desconectadas e fragmentárias. Assim, um dissidente pode ser alguém que escreve artigos críticos do governo, ou que tenta formar um sindicato independente, ou simplesmente se recusa a participar de reuniões de um comitê revolucionário local. Na sua variedade e falta de qualquer coordenação, a única abrangência que possuem é o fato de serem carimbados como contra-revolucionários.
A legislação cubana tem no seu código penal artigo – que parece ter saído do 1984, de George Orwell – sobre a periculosidade. A acusação de periculosidade é a arma invejável da ditadura mais opressiva: permite, assim, às autoridades trancafiar em seus cárceres indivíduos antes que eles tenham cometido qualquer crime. Basta a suspeita de que eles possam perpetrar o ato em um futuro imprecisado. Mas o conceito é realmente admirável na sua conveniente adaptabilidade para o funcionário repressor, eis que atividades alegadamente perigosas incluem o não-comparecimento a comícios e reuniões pró-governo. Também é motivo de suspicácia legal o fato de não integrar as organizações oficiais do Partido, ou até a circunstância de achar-se desempregado.
É importante assinalar que o conceito polivalente de periculosidade não é limitativo em termos de duração de pena. Por ter escrito artigos para sites estrangeiros na internet Raymundo Perdigón Brito foi condenado a quatro anos, por causa dessa extrema periculosidade,ser articulista. Outro homem, igualmente sentenciado por quatro anos pela tal ‘periculosidade’ (tentara distribuir cópias da Declaração Universal dos Direitos Humanos ao público em 2006), enquanto preso, intentou celebrar no cárcere o Dia Internacional dos Direitos Humanos – dez de Dezembro. A sua leitura foi interrompida por um guarda, que mandou que engolisse o papel. Como se recusou, levou uma surra, foi jogado em solitária por várias semanas, e, ao fim e ao cabo, sentenciado em procedimento secreto a mais seis de prisão, por desacato à autoridade.
Diante de tanta crueldade, de tantas sevícias, dessa exaltação excessiva do amálgama de burrice e boçalidade, além de toda a repulsa que a descrição pormenorizada de todos esses abusos – que põem no chinelo as práticas da famigerada prisão de Abu Graib no Iraque - a única impressão que volta, renitente e impertinente à minha mente, é a de buscar entender como o companheiro Lula e seu acólito podem se sentir camaradamente e risonhamente à vontade na companhia desses ditadores.
( Fonte: The New York Review of Books )
[1] os muitos.
[2] token significa ponto.
[3] The New York Review, número de 27/05/2010.
[4] O que é estranhamente reminiscente da campanha de Mao das Cem Flores, em que o líder chinês semelhava encorajar a formulação de outras ideias políticas diante das oficiais.
domingo, 22 de agosto de 2010
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Um comentário:
Gostaria de congratular o escriba pelo artigo. Revoluções se justificam apenas se buscarem a democracia. Qualquer regime não democrático, por benevolente que seja, jamais será legítimo.
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