Nas campanhas eleitorais, e até fora delas, conquanto os suspeitos neguem de pés juntos, a utilização do chamado dossier se tornou um recurso quase habitual. Como explicar tal recorrência, a despeito de seu vício de origem, dada a ilicitude que o caracteriza, pela sua origem muita vez clandestina ou mesmo criminal ?
Analisando as suas mais recentes aparições, dir-se-ía que esta prática seria exemplo da mítica geração espontânea. Os seus rebentos, ultimados ou não, jamais ostentam os respectivos autores. No submundo da política brasileira, essas nefandas compilações de alegados delitos, tráfico de influência, e quejandos, parecem ter adquirido foros de armas quase corriqueiras, pela ânsia de atingir a honra do inimigo e/ou de seu grupo, e assim enfraquecê-lo politicamente.
Para que melhor se entenda esse vezo, é importante notar que falo de inimigos e não de adversários, por que tal usança só é concebível nos porões da ilegalidade. Ela está na descendência da campanha difamatória dos tempos do regime militar. A principal diferença entre os dossiers de hoje e as notícias difamatórias de ontem, verberadas então pela mídia alinhada à ditadura, é que essas últimas em geral eram verdadeiras[1].
Não obstante o caráter antiético e passível de punição da feitura – em geral sob encomenda - e da comercialização de maços de informações alegadamente comprometedoras, os que, talvez em reminiscência aos temores do personagem sinhozinho Malta, da novela Roque Santeiro, ora se denomina rotineiramente de dossier.
Galicismo ou não, mais uma vez o vernáculo, esta ultima flor do Lácio, se curva diante da língua literária europeia do século dezenove. Se este fato linguístico é comum, e participa do livre mercado da evolução dos idiomas – o que contraria opinião idiossincrática de um deputado – tal circunstância nada tem a ver com a natureza vil e desprezível do exercício, visto por alguns como linha auxiliar da política, malgrado o seu estampo vil, nefário e marginal.
Analisado de forma sumária esse obnóxio recurso da política nacional, é tão confrangedor que, não obstante o caráter condenável, seja tão encontradiço na atualidade. A quase banalização deste meio de ataque fora dos padrões vigentes deve ser atribuída à impunidade a qual, por motivos vários, tem bafejado os indivíduos e/ou corporações que recorreram a tal meio.
Foi assim no caso do escândalo dos aloprados do PT, em 2006, descoberto pela ação da Polícia Federal. Ninguém foi condenado, mas a sua repercussão teve como consequência forçar Lula a ir para o segundo turno contra Geraldo Alckmin.
Por causa de outro escândalo, o dos cartões corporativos (janeiro de 2008), a Ministra Matilde Ribeiro, da Igualdade Racial, teve de pedir demissão. Em represália, a Casa Civil teria montado, por ordem da Secretária-Executiva Erenice Alves Guerra, um dossiê que detalhava os gastos da família do Presidente Fernando Henrique Cardoso. A Ministra Dilma Rousseff, seguindo sua orientação costumeira, não admitiu a feitura de dossiê, mas sim de o que definiu como um banco de dados. Descartou, a propósito, qualquer conotação política desse recurso.
Já na fase inicial da pré-campanha presidencial, atendida a então vantagem considerável do pré-candidato José Serra nas pesquisas, vazou por denúncia do delegado aposentado Onésimo Sousa a realização de reunião em Brasília para tratar da elaboração de dossiê contra o pré-candidato do PSDB. Veiculou-se a participação, depois desmentida, do dirigente petista Fernando Pimentel.
Nesse contexto, foram acessados ilegalmente os dados fiscais do Vice-Presidente executivo do PSDB, Eduardo Jorge Caldas Pereira. Feita a denúncia pela vítima, a reação da Receita Federal foi a princípio bastante lenta. Determinou-se a origem de tais infrações em Mauá, no ABC paulista, e os acessos teriam sido feitos com a utilização da senha de duas analistas da Receita.
Somente por determinação judicial, ao cabo de dois meses, pôde Eduardo Jorge ter ciência do material da sindicância. Revelada a devassa das declarações de renda de 140 pessoas, o Secretário da Receita, Otacílio Cartaxo, e o corregedor-geral, Antônio Carlos Costa d’Avila, disseram não acreditar que houvesse motivação eleitoral no que chamaram de “balcão de venda de sigilos”. Não descartaram, contudo, a possibilidade de uma vinculação política vir a ser apurada até o fim das investigações.
Desde o início, porém, a Receita tem frisado que o resultado dessas investigações só será conhecido depois das eleições. Também da investigação da Polícia Federal o seu diretor-executivo, Luiz Pontel não deu prazo para a conclusão do inquérito.
A esse propósito, o candidato José Serra, após definir como “história da carochinha” a versão dada pela direção da Receita Federal, declarou : “Em todas as eleições, o PT procura fazer a mesma coisa.(...) Agora tem a quebra de sigilo, e todo aquele dossiê que estavam fazendo, comandado pelo candidato ao Senado de Minas Fernando Pimentel e que não deu certo. (...) Não adianta usar de baixarias para querer me desgastar na véspera de eleição. Isso não funciona. (...) A tradição já está mostrando que vai contra aquele que faz esse tipo de ação.”
Forçoso será reconhecer que o emprego de dossiês tem sido contraproducente para os seus fautores, malgrado os usuais desmentidos e outras reações pro forma. De resto, para determinar o mandante de tais ações não é às mais das vezes nem necessário convocar os usual suspects[2], na fala do personagem Claude Rains, do filme Casablanca. Basta valer-se do velho axioma latino “cui prodest”[3], e já teremos uma base assaz verossímil para chegarmos aos responsáveis.
Se tudo terminar em pizza, não será por falta de elementos de razoável convicção.
Entram aí fatores sociopolíticos que tornariam este artigo demasiado longo...
(Fontes: O Globo e Folha de S.Paulo)
[1] As denúncias de torturas, sevícias, desaparecimentos et al., divulgadas no exterior pela oposição, posto que negadas pelo governo castrense, nada tinham de difamatório, eis que correspondiam a fatos que a censura vedava menção ou publicação pelos meios de comunicação.
[2] suspeitos costumeiros.
[3] a quem aproveita.
sábado, 28 de agosto de 2010
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