terça-feira, 3 de agosto de 2010

CIDADE NUA IV

Um bom Partido (06)

Eudóxia chega um pouco em cima da hora. Sob as vistas de Raquel, o nervosismo do pai denotava impaciência com o atraso.
Recebeu-a, no entanto, com largo sorriso.
“ Desculpe, se fiz o senhor esperar...”, disse ela, enquanto o fitava nos olhos.
“ Não foi nada...”, respondeu, entretido em contemplá-la.
Com um gesto discreto a toma pelo braço.
“ Vou mostrar a você onde está o telefone e a mesinha, para as anotações.”
E segurando o antebraço nu, a conduz até o canto da sala, para o que será o seu local de trabalho.
“ É só puxar a cadeira... o que acha do arranjo ?”
“ Ótimo, doutor Álvaro, não podia estar melhor...”
Em resposta, põe dois dedos juntos sobre os lábios da jovem.
“ Não me chame de doutor...”
Logo se afasta, empurrado pela pressa de sair. Não deixa, porém, de despedir-se com afável tapinha sobre o ombro exposto.
Da porta do corredor, a filha Raquel observa.
*
“ Não sabia que o senhor viria almoçar...”
“ Será que sou tão velho assim pra me chamar de senhor ?”
“ É que fico sem jeito...”, diz quase em sussurro, abaixando os olhos.
Ele toca outra vez, de leve, no ombro desnudo. Pareceu a ela que aí se demorasse um tantinho.
“ Onde está a Raquel ?”, perguntou, sentando-se à mesa.
“ Não sei... Ela saíu sem me dizer nada.”
A empregada, que servia, resolveu intervir:
“ Raquel me falou que ía almoçar fora...”
Impressiona a Eudóxia o modo com que Álvaro come. Engole quase sem mastigar, num ritmo que a preocupa.
Como temia, acaba por engasgar-se. E a sufocação não é das menores, a ponto que, diante de seus olhos arregalados, ele se levante num arranco, na maneira de quem se desespera no afã de respirar.
De pé, tenta em vão inspirar. Com as vistas esgazeadas, os seus guinchos exprimem o desespero crescente de quem não logra desimpedir o caminho dos pulmões.
Vendo que as coisas vão de mal a pior, ela o toma pelas costas. Com os braços em v coloca a mão esquerda fechada entre o umbigo e o osso pontudo do tórax. Bota em seguida sobre a primeira a direita, nela batendo vigorosa para dentro e para cima.
Entrementes, lhe diz ao ouvido:
“ Procure tossir ! Pigarreie forte !”
No terceiro golpe, ela sente que, por fim, Álvaro consegue respirar.
Ao cabo do transe, ainda em choque, deixa cair os ombros arqueados no esforço. Debaixo do cansaço da súbita ânsia e da luta inopinada, ele se arria como um fardo frouxo, largando-se pesado sobre a cadeira.
Zélia, que acorrera da cozinha, traz um copo d’água.
Por mais de minuto, se mantém de olhos fechados, a cabeça baixa, com a testa apoiada pela mão esquerda, os dedos entreabertos.
Ela continua a seu lado, a mão direita esquecida sobre a espádua.
Afinal, ele busca recompor-se. Permanece sentado, mas a sua mão procura a de Eudóxia. Pousando por cima dela, Álvaro a aperta de leve, se bem que por um longo instante.
“ Como se sente ?”
“ Agora, estou bem. E graças a você.”
“ Não fiz nada de mais.”
Olham para os pratos na mesa. Estão pela metade, porém ambos perderam o apetite. Os dois se entreolham.
“ Acho que para nós, o almoço acabou. Acaso estou enganada ?”
“ Você tá certíssima. Zélia, pode levar os pratos.”
Ela de pé, ele sentado, parecem reproduzir uma foto antiga. Como que distraídos, se quedam por uns momentos mais na mesma posição.
“ Se me permite, Álvaro, gostaria de recomendar-lhe...”
“ Não precisa, minha cara. Aprendi a lição.”
*

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