sexta-feira, 4 de agosto de 2017

O testemunho de Artur


                    
     Lembram-se do bebê Artur? Nunca nessa terra a violência chegou a tal ponto de cega crueldade e de negação da vida.

     Não é retórica a minha pergunta.
     Questiono se ainda se recordam do bebê que a mãe levava no ventre, quando já se anuncia a cercania da maternidade?

     Como podemos explicar morte tão cruel, que vai buscar no útero materno, lugar santo que é o símbolo da vida, a criaturinha que encerra o amor dentro de todas as suas fases?
      Não há ser humano que não haja se aconchegado nesse recanto abençoado, que é símbolo da maternidade e da importância da mãe na vida de todos nós.
       Pois no Rio de Janeiro, fica demonstrado que, nem no âmago da vida, e nesse símbolo mais sagrado, do amor e proteção maternas, o nascituro está livre da maldade e da brutalidade humanas.
       Pois, não há em verdade balas perdidas. Elas são disparadas pelo mal, pela maligna indiferença, pelo desprezo da vida e das gentes.
       A corrupção é o arsenal inesgotável desse imenso, incessante e ingovernável tiroteio, que traz em si o mais fundo menosprezo pela vida humana, não importa aonde essa vida se aninhe, se esconda ou se refugie.
       As chamadas balas perdidas não são filhas do acaso. Elas são criaturas engendradas  pelo mal, entidade  que envolve nas suas negras sombras tudo o que de perverso imaginar-se possa.
       Mas como tais projéteis não tem pai, nem mãe, quem inferniza as pobres vizinhanças com torpes fuzilarias, estúpidas e em extremo malignas, de nada se acredita responsável, pois pensa nada ter alvejado, nada ter atingido, e por não ver acredita nada de mal ter feito.
         A bala perdida é ainda pior que o assassino que nos lôbregos caminhos mata à traição a vítima jurada de morte por algum poderoso de turno.
              Pois se sentido existe - por mais que seja reprovado - em ataque covarde, que o noturno manto recobre, já nesse outro assassinato, há cega vontade de matar, e ao mesmo tempo torpe menosprezo quanto à extensão do mal que vai causar.
               Se a prática das balas perdidas exprime enorme, repugnante indiferença, a par de descomunal menosprezo por nossos semelhantes - a saraivada de projéteis é a assinatura com firma reconhecida da respectiva indiferença pela existência de quem esteja à volta do assassino. Por mais anônimo que seja, ele tem a própria culpa inscrita em algum registro celeste, que há de ser mais eficiente que qualquer burocracia.
                A bala perdida, que com ela carrega o aço assassino, de tudo é capaz. Pois até nascituros mata, e com o peso da maldade.  
             Acaso sabem os altos senhores - que jamais pisarão no chão de bairro chamado Lixão - que no desgoverno a que tanto colaboram, seja no desvio de verbas, seja nas infindas variedades dos descaminhos dos fundos públicos, que o respeito da vida alheia - pois da própria todos o tem - está na base do sagrado fundamento da administração pública e da existência de comunidades em que o bebê Artur teria a oportunidade de nascer na boa hora, para a alegria de seus  pais?
                 A violência, que arrancou da mãe amorosa o bebê Artur, não é criatura que sai do Nada. Na verdade, esse nada é o dédalo da violência, que cousa alguma de bom produz. Mas ele, no colo de dona Corrupção, é abrigado e escondido, para que irrompa amiúde, através das indigentes paredes de escolas adrede mal-feitas, para poupar mais dinheiro para as burras da gente do mal. Pois eles não vivem só em favelas, mas também em quartéis, e em bairros classe A. Aí encontramos a indiferença, senão a cobiça, que é sede que jamais será saciada.
                 Adeus, Artur. Tua vida breve não te deu tempo de escolher crença alguma. Mas quem sabe por seres inocente poderás ambicionar a glória dos céus e os cânticos do paraíso.
                  A tua existência, brevíssima que foi, os fados a carregam de sentido imenso.  Como o bem há de vencer o mal, se em tais lugares, que parecem desertos de bondade, os grandes não só estão longe, mas dão funda impressão de que essa existência onde a cega perversidade está de tocaia semelha algo permanente, em linha genealógica que a perder de vista se estende pelos lixões afora desse mundo, vasto mundo.


(Fontes: O Globo, Carlos Drummond de Andrade)     

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