terça-feira, 29 de agosto de 2017

Do incômodo à ameaça

                    

        A Coreia do Norte - este não é o seu título oficial  - continua decerto um país pobre, com boa parte da sua população vivendo no limiar da miséria, e a sua diferença de padrão de vida é tão marcada em relação à Coreia da Sul,  que o governo de Pyongyang busca em geral escamotear tal circunstância.
         Não há duvida se os régulos da Coreia do Norte tivessem um objetivo mais modesto e mais terra à terra, a situação do próprio sofrido povo não apareceria tão mal  no quadro existencial das nações do Extremo Oriente.
          A própria China parecerá um eldorado em termos de comércio e de consumismo, embora ainda existam bolsões de pobreza no Eldorado chinês, sempre se cotejada com a Coréia do Norte.
          Na estranha monarquia de Pyongyang,  o atual soberano Kim Jong-un tem incômoda presença, sobretudo para Washington, mas também para Seul. Isto ele já o demonstrou em excesso, a ponto de que empalidece a obnóxia presença de seus antecessores - na linha real encetada pelo pater-familias Kim Il-Sung, que por causa da IIa Guerra Mundial instalou-se na Coréia, graças aos préstimos de Joseph Stalin. Depois de sobreviver à guerra da Coreia em que, com a ajuda da China Comunista e seus 'voluntários' firmou-se o poder da família Kim na parte setentrional da península.
             A República Popular da China, por força dos grandes cometimentos em defesa da Coréia do Norte - como no citado conflito com os Estados Unidos - se marcou pelo seu apoio ao regime de Pyongyang, além de constituir uma área de especial atenção para os gerarcas do Império do Meio. Existia como que um interesse especial por aquele atrasado país, máxime pelo fato de ser regido pelas normas marxistas-leninistas. A maior parte dos gerarcas chineses tinha por princípio visitar aquela nação que a RPC se esforçava em ajudar, por laços ideológicos de que não se pode excluir algum sentimentalismo. Nesse quadro, está a visita do então Primeiro Ministro Zhao Ziyang  à Coreia do Norte. Após uma série de cargos importantes e sendo próximo do líder Deng Xiaoping, Zhao teve de visitar aquele país aliado da China. No entanto, essa viagem teve o condão de afastá-lo de Beijing em momento chave da história recente chinesa, quando surgira na praça de Tiananmen o movimento dos estudantes pró-democracia
             A ala conservadora do regime, encabeçada por Li Peng, influenciaria Deng Xiaoping  para escrever editorial no principal jornal do Partido, estigmatizando o movimento na Praça, em uma linguagem que se especula teria sido evitada por Zhao. Este, no entanto, estava longe na Coréia do Norte...
                Essa ausência de Zhao em momento chave da história chinesa pode explicar muito de o que ocorreu depois. Mas esse pormenor é igualmente relevante porque ele descerra a cortina sobre os estranhos caprichos da História. Se Zhao ficasse em Beijing, o grupo de Li Peng teria acaso a possibilidade de fazer com que o ancião Deng usasse a linguagem do artigo, o que afastou as lideranças estudantis e mais envenenou o ambiente. Tudo como Li Peng e seus aliados desejavam, dentro da velha receita de quanto pior melhor...
                 Escrevo tais observações porque sinto que o sistema de prevenção das armas nucleares tem na Coreia do Norte um dos seus fracassos determinantes. Conter será sempre mais difícil do que difundir, como a trajetória de Pyongyang o mostra hoje de maneira irrecusável.
                  Nessa involução na política de contenção das armas nucleares, muitos fatores terão operado para tornar possível o que hoje se assiste em matéria de desagregação das defesas institucionais dessa terrivel arma.
                    Que o hoje pacífico Japão vire expectador  do cruzeiro de um míssil que sobrevoou o país no que se pode definir como  exercício para o prazer do atual soberano da Coréia do Norte, é uma questão que, pesa-me dizê-lo, torna precárias as avaliações tradicionais tanto da segurança, quanto daqueles em condições de lidar com ela.
                     É sempre tarefa árida e pouco promissora investir contra os erros do passado, sobretudo quando os fatos consumados nos cercam e nos contemplam com um esgar que pode parecer sorriso, mas não o é.
                      Qual será a próxima brincadeira de Kim Jong-un?  



(Fontes: O Estado de S. Paulo;  Prisoner of the State, by Zhao Ziyang)

Nenhum comentário: