terça-feira, 20 de setembro de 2016

Lembranças do padrinho Chico (X)

                              

         À parte as dificuldades causadas pelo traslado para o Rio de Janeiro, a entrada nossa no edifício Satélite, no nono andar, em apartamento de frente,   nos ajudaria a enfrentar, com ânimo renovado, as eventuais novas dificuldades.
          Passei a cursar o primeiro ano do ginasial no Anglo-Americano. Nos fins de semana ía à praia no Posto Seis. Minha mãe, da sacada podia me cuidar à distância, pois naquele tempo, no quarteirão frontal ao nosso, havia apenas dois prédios construídos do outro lado da avenida Nossa Senhora de Copacabana, o que não lhe barrava a vista do filho na praia.
          Nos sábados à tarde, a minha diversão estava em acompanhar o campeonato de futebol de areia de Copacabana. Cada posto tinha em geral um time - o do Posto Seis era o Lá-vai-bola.  Se não me engano, no certâmen de 1949 acompanhei, junto a 'torcida' da equipe, todos os jogos, que se realizavam nos outros postos, ao longo do passeio da Praia de Copacabana, até o Leme.
           Por isso, tais partidas se disputavam às vezes bem longe na orla da Princezinha do Mar, mas mamãe não negava ao gurizote a oportunidade. Ía sozinho, embora já conhecesse vários torcedores do time do Posto Seis. Nunca tive qualquer incômodo.
            De resto, estávamos motivados. Fosse perto ou longe, os jogos terminavam sempre bem para o Lá-vai-bola. Que eu me lembre daquele distante ano da graça de quarenta e nove, recordo-me do campeonato invicto do Vasco da Gama - esse sempre foi o meu time carioca preferido, desde quando vi, ainda em Porto Alegre, na contracapa da Noite Ilustrada a foto do time campeão invicto do certame de 1947, em fila indiana... Naquela época, os times de Rio e São Paulo eram os mais fortes. A diferença a seu favor contra as equipes dos outros estados (inclusive os do Rio Grande) era enorme.
             Sem embargo, viver no Rio de Janeiro nos proporcionava outra vantagem. Rio e São Paulo são cidades relativamente próximas, e isto terá motivado o convite dos padrinhos a que nós viéssemos passar as férias do verão na rua Turquia, 26, que como o leitor não terá esquecido, era o endereço da casa dos Tios Chico e  Bi, em São Paulo.
              Não me recordo como fomos para São Paulo naquele ano de 1949. Minha mãe preferia a viagem de trem, que naquela época as cidades de São Paulo e o Rio de Janeiro, então a capital da República, tinham de forma regular. Saía da Central do Brasil e ía até a estação da Luz, na Paulicéia.
              E para lá viajamos. Era  estada com datas por nós fixadas. Muito diferente das condições anteriores, em que a fatalidade nos tinha deixado, na prática, sem um pouso certo para voltar.
              Desta feita, já era muito diverso. Embora nos sentíssemos bem na morada dos Lanzetta, tínhamos apartamento a esperar-nos. E isso nos punha mais à vontade.
               À noitinha, depois do jantar, o padrinho fumava o seu charuto, enquanto lía ou o Time, ou algum jornal de São Paulo. Naquele tempo, havia matutinos e vespertinos.
                O casal tinha razoável biblioteca, e por vezes lia algum livro que estivesse ao meu alcance.
                Não sei se foi em janeiro ou fevereiro que houve  partida importante no Pacaembu. Era de tarde, não sei se no domingo ou no sábado. Fiquei, portanto, animado quando o padrinho me convidou para acompanhá-lo para a tribuna do Pacaembu (minha tia não ligava muito para futebol). Perguntei então ao meu tio:
                "Que times vão jogar?"
                " É o Corinthians e o Vasco da Gama".
                 Como o leitor não ignora, eu já era vascaíno e desde 1947.
                  Na tarde do jogo, que terá sido num domingo, lá fomos de carro para o Pacaembu. Na época, era o maior estádio em São Paulo. No Rio, São Januário ainda seria o maior estádio (o Maracanã estava sendo construído para a Copa do Mundo do ano seguinte).
                   Nesse domingo, um dia agradável do verão paulistano, o Pacaembu não me pareceu muito cheio. O jogo estava um a um e nos aproximávamos do final.
                    Se do restante da partida nada me ficou na memória - seja a entrada das equipes, seja até os dois gols - a atenção aumentou quando já se acercava o final.
                    A expectativa era crescente no público e isto, pode-se dizer, pairava no ar. Estávamos na tribuna, que ficava próxima a um dos gols, e com visão afastada do arco que ficava no lado oposto.
                     Então, não sei quem mandou um centro que caíu em cima da área vascaina. De longe entrevi um vulto negro com a camisa do Corinthians erguer-se no ar e acertar com a cabeça o passe recebido.
                     O Pacaembu explode de alegria com o goal de Baltasar, o cabecinha de ouro. Descubro-me atônito, diante da derrota do meu time.
                      E eis que vejo, para minha surpresa, o padrinho subir também nas cadeiras, e participar do geral regozijo...
                      Torcedor que era, e com a seriedade que as crianças podem ter, olhava atônito para o tio Chico.
                       Torcedor que era, fiquei com raiva. Os meus olhos não pareceriam por certo de bons amigos.
                       Por sua vez, Tio Chico estava noutra. Surgira um novo corinthiano. Como podia ele dar-se conta de que, nesse momento, de geral e compartilhada euforia,   que  o time perdedor era justamente o meu ?

                       Sozinho na tribuna de honra, assistindo à geral confraternização pela vitória contra o time que era a base da Seleção, iria guardar, dentro de mim, o amargo sabor da derrota do time do coração. Sem o saber, o meu padrinho iria aprender, e de um gurizote como aquele, que vingança é prato que se come frio...       

Um comentário:

Mauro disse...

Caro Pai, estou apreciando muito a série. Principalmente agora que as coisas estão indo melhor para a dupla de protagonistas. Este episódio eu conhecia, mas não com esse contexto e detalhes. Que diferença com o Vasco de hoje em dia...
Abs,
Mauro