Os leitores que
me honram há mais tempo com as suas visitas ao blog hão de se ter perguntado por que não mais me ocupei da guerra
civil da Síria. Faz realmente tempo que o acompanhamento do conflito contra Bashar al-Assad deixou de ser de uma
questão prevalentemente interna, para transformar-se em algo no paradigma da
guerra civil espanhola. Naquela longínqua conflagração, sua internacionalização
constitui espécie de antecâmara da Segunda Guerra Mundial. Nela, notadamente,
as potências do Eixo e, em especial a Alemanha nazista, despejaram a própria
aviação e armas, para apressar a vitória das tropas do general Francisco
Franco.
Na Terra
da Passagem[1]
foi diferente, embora o embate, nascido de pacíficas passeatas em prol da
democratização do regime dos Assad,
tenha levado a seguir a confrontos ao sul e na área de Damasco. Foi
decerto o caráter ditatorial do regime sírio, habituado desde Hafez al-Assad a
resolver desinteligências com mão de ferro, que tornaria inevitável a evolução
da revolta para a guerra civil, e a conseguinte participação das duas correntes
antagônicas do Islã, a Sunita e a Xiita. Dessa última a dissidência alauíta
constitui aliada natural.
Antes da guerra civil, o regime sírio
observava uma rara tolerância religiosa, se cotejada com o restante do mundo
árabe. Com efeito, na Arábia e no Irã, a chamada tolerância é fenômeno raro.
Mesmo naqueles países em que ela existe, em momentos de comoção como no Egito,
a maioria islâmica demoniza a minoria copta (que a antecedera naquelas terras)
e cristãos sofrem as consequências de problemas que afetam a maioria islâmica.
Com efeito, a tolerância não é característica do Islã - que o digam os cristãos
caldeus, no Oriente Médio, e os próprios coptas, que são demonizados pela
maioria islâmica do seu respectivo entorno.
No caso da Síria, a relativa paz
religiosa se explicara pela ideologia da corrente alauíta, que, apesar de ter
vínculos com o Xia, pelo seu sincretismo
tende mais para a composição e, por conseguinte, o respeito aos outros credos.
Nesse quadro, na fase pré-revolucionária a Síria dos Assad constituíra relativo
oásis de tolerância religiosa.
Tudo isso acabou com a guerra
civil, que completou um lustro de duração. Apesar de haver principiado em 2011,
ainda não há sinalização confiável de que a paz, desejada pela população civil
- e o seu sofrimento podemos esboçá-lo em dois momentos que ainda prevalecem: a
gigantesca massa de refugiados, que a Comunidade Europeia (malgrado o grande
gesto da Chanceler Angela Merkel[2]) acolhera em pequenas levas. Já regimes
fascistóides como o húngaro, de Viktor Orbán, lhes fechariam as portas.
Até mesmo a coragem da Merkel não
passaria indene nos pleitos seguintes para os Länder alemães, em que a CDU (União Cristã-Democrata), o partido da
Chanceler, perderia em departamentos regionais. Sem embargo, à explosão da crise
dos refugiados precederam outros momentos, em que Barack Obama prosseguiria na
sua linha contraditória. Com efeito, o presidente, na véspera de seu segundo
mandato, recusara a proposta de Hillary e dos outros três chefes de
departamentos com responsabilidades no conflito sírio. Obama preferiu não aceder à proposta desse
quarteto, embora haja continuado no Afeganistão.
É preciso não esquecer que por
volta desse tempo Bashar al-Assad era dado como praticamente no caminho do
exílio. Além de ser um provável réu do Tribunal Penal Internacional, Bashar
assistia a que familiares seus debandassem para o estrangeiro, já não
acreditando na sua sobrevivência política.
Mas enquanto o semi-providente
Obama negava aos revolucionários sírios da primeira hora qualquer ajuda, gospodin Vladimir Putin acederia às
instantes súplicas de seu vassalo Bashar, que na hora do desespero tomara o
avião, e de chapéu na mão, adentrou o Kremlin.
Por mais frio que seja Putin,
ele sabia que não tinha escolha, senão fechar com al-Assad. Senão, como ficaria
a sua base naval de águas quentes no Mediterrâneo oriental? Tampouco
Teerã dos ayattollahs poderia
encarar a perda de sustentação de seu aliado Hassan Nasrallah, o chefe do
Hezbollah, milícia guerreira - que tantas já aprontou para Israel e que é força
militar não desdenhável naquele teatro. Sobretudo porquê essa milícia luta com
a motivação de quem não tem outra escolha... A eventual queda de al-Assad e de
seu regime, implicaria na supressão dos subsídios para essa milícia, e a
enfraqueceria.
Por outro lado, o Kremlin tem todo interesse na
preservação do regime alauíta de al-Assad, que já lhe concedeu duas bases para o
apoio de sua força aérea (em Latakia), e anteriormente, em Tartus, com base naval nas águas quentes do Mediterrâneo oriental.
A sustentação do regime de
Assad na Síria é despesa decerto gravosa para o erário russo, mas para Putin
indispensável. O escopo do autócrata
russo pode sair-lhe caro, máxime para um país que apesar de grande encolheu
bastante, e que tem caminho acidentado pela frente se deseja bancar todo o seu
programa de enfrentamento da Aliança Militar do Atlântico Norte (NATO), assim como
respaldar a Bashar na Terra da Passagem.
Quem não viu na mídia a
foto do garotinho sírio, afogado em praia do Mediterrâneo oriental, de três
anos de idade, que é a vítima símbolo, porque inocente, da crise na Síria, que
deu origem a este enorme movimento de refugiados?
No próximo artigo
tentarei responder às indagações que essa tragédia sócio-político-militar
causou para as populações civis envolvidas, que estão pagando o pesado preço,
apesar de que, como de hábito, pouco ou nada tenham a ver com este gigantesco
castigo.
Afinal, este êxodo sem
paralelo na história recente, não poderia ter sido evitado? (a
seguir)
( Fontes: The New York Times; blogs anteriores )
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