Ao desenhar,
ainda que com traços filtrados pelo véu amiúde capcioso da memória, busco ter
presente diante de mim a imagem do tio de passos resolutos e gesticulação por
vezes súbita, mas nunca inconsequente. Como escrevi há muitas linhas atrás, nos
seus verdes anos, ele se mostrava decidido, senão resoluto.
Não que tivesse cacoetes - estes em
geral tomam guarida no gesto - mas sim o vigor da juventude para trás deixada
e, por isso, os ademanes, ao invés de traí-lo, mostravam-lhe a efusiva
disposição, a natural, posto que comedida, alegria. Chico tinha essa joie de vivre[1],
que muito depois, nos oitos anos que a carreira me concedeu nas duas
residências, na cidade, tanto do Quirinal, quanto na eterna, dos Papas, eu me
acostumaria a distinguir nos seus habitantes.
Não há povo mais simpático, e mais
próximo do brasileiro que o italiano. Nas minhas duas e ainda felizes estadas,
vi crescerem os meus filhos. Servi como Primeiro Secretário e Conselheiro na
Roma leiga, no enorme Palazzo na
Piazza Navona, que a habilidade de Hugo Gouthier logrou comprar para o Brasil
com sacas de café; e, já mais velho, como Ministro, cheguei, por caprichos das
Parcas, a ser por longos meses, Encarregado-de-Negócios junto à Santa Sé.
As minhas relativas mudanças na sorte
as mostrei notadamente no gordo punhado de anos que passei na Corte Pontifícia.
Lá estava João Paulo II, o papa polonês, que subitamente, por estranha
tentativa de assassínio, perdeu o antigo vigor por força de haver visitado a
contra-gosto as aras da morte. As minhas diferenças na riqueza foram menos de status do que aparência. Os meus
recursos ao chegar, com os pesados compromissos de educar os meus filhos, me
obrigaram a conservar um velho Volkswagen cuja aparência, ainda que correta,
infundia dúvidas aos guardas vaticanos quanto ao meu real status.
Isso mudaria - muito mais tarde, é
verdade - quando comprei um BMW, que
pôs os meus filhos mais à vontade, mas não o nosso mui estimado Dick, cachorro vira-lata sim senhor, que
abominava, com toda a justiça,a alta velocidade. Já os guardas papalinos se
tornariam mais deferentes, pois mesmo na Cidade Eterna a medida dos tratamentos
pode tristemente depender das aparências.
Oito anos em Roma, não se passam em
vão. E ainda por cima quando se conhece as duas margens do Tibre. Creio já
tê-lo dito, mas o repito de bom grado. Não há povo mais simpático, e com quem
mais possamos sentir tanto a humanidade, quanto - e até mesmo - a fraternidade.
Não posso queixar-me da carrière, cujos postos sempre cheguei
por merecimento, e de que tive a oportunidade - apesar da mesquinharia do alto plantão
- de completar cinquenta anos de serviço.
Mas voltemos à Cidade Eterna. Como lamento que não haja podido, por força
dos desígnios das três Cegas, ali receber os meus padrinhos. Minha mãe esteve
comigo e os dois netos na primeira Roma, aquela do Quirinal. Infelizmente desta
partiria pouco depois.
No entanto, ao tentar escrever sobre
o meu bom Padrinho, Roma, se insinuou. Como Chico, o italiano parece duro e
severo, mas, na verdade, às mais das vezes, tal sucede para disfarçar-lhe o
natural simpático e emotivo. Já escrevi antes que o Padrinho tinha os gestos
fortes e afetivos. A própria emotividade, que o levava às lágrimas, é comum ao
povo de onde os seus ancestrais saíram.
Já me reportei ao gesto, tantas
vezes repetido, pelo qual, como per
scaricare (para descarregar) o próprio sentimento, Chico esfregava as próprias
mãos, de forma mais do que expressiva, na verdade veemente, como são de resto
muitas das atitudes da gente itálica.
O
romano, que aprendeu a conviver com dois poderes - o eclesial e o dos príncipes
- adquiriu por uma sapiência milenar aquela visão que, sem ser desrespeitosa,
sabe delimitar os espaços entre o divino e o temporal. Só em 1870 terminou o
Poder temporal dos Papas, eis que somente nesse ano, Pio IX teve de deixar o Palácio do Quirinal, e recolher-se no
Vaticano.
Assim, o Papa-rei teria uma vida superior a mil anos, e por isso se
compreende a ironia do romano. Os carros oficiais do Vaticano têm as letras SCV[2],
que o romano logo traduziu para se Cristo
visse. É a ironia do romano, acostumado a conviver com o luxo eclesial.
Mas
se tomarmos visão mais larga do italiano, veremos que é também um povo
supersticioso. Como iria aprender só mais tarde, ao invés de um único número -
como o treze que parece universal - o
italiano tampouco vê como de bom augúrio o dezessete.
Segundo aprendi na Argélia, esse outro número mereceria também cuidado e
atenção...
Ao recordar-me de meu
padrinho, é difícil de esquecer a cena que se lhe deparou no quintal da casa da
rua Turquia 26, que tinha, nas partes do quintal, um gramado mal-cuidado e espaço para quaral de
roupas, dependências de empregada e uma garagem, em que ficava a minha bicicleta
Hércules, e nenhum carro.
Já caía a tarde e ali estava a
turminha dos guris da vizinhança - Sérgio Taliba, o irmão de Cármen, Moacir,
que se não me engano morava na residência além da casa de nossos vizinhos à
direita, e mais alguns outros, de que a lembrança o tempo levou.
Chico costumava contornar a
casa, depois de abrir o portão, e nela ingressar por escadinha da cozinha. Em
fazendo isso, teve, como de hábito, de caminhar pela orla do quintal, e a
brincadeira a que assistiu, que brincadeira não era, se não o surpreendeu, o
deixaria com a cara fechada.
Passaram tantos anos, que
talvez não seja a descrição mais próxima da realidade. Pois o gesto e os olhos que
à distância me fitavam, mostravam mais do que isso. Ele não sabia que
participação eu tivera - a idéia não fora minha, mas nada fizera para impedi-la
-, mas meu padrinho não podia deixar, mesmo ao longe, de transparecer a
respectiva funda reprovação, conjugada com difusa percepção dos infernais
perigos que aquela má-travessura traria para a sua casa.
Meu padrinho jamais me disse
palavra sobre aquela infausta experiência. Nem eu senti que acaso precisasse.
(
Fontes: Papa Giovanni, João Paulo II, Margaret
Mitchel)
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