O artigo de Elizabeth Drew é importante demais no contexto do futuro da
democracia americana para que os fatos políticos nele mencionados não sejam sequer
conhecidos, ou, o que é pior, relegados
para a visão peneirada pela superficialidade da grande mídia.
Os grandes fatos podem ser resumidos
da seguinte forma. Com a eleição de Barack Obama em 2008, o Partido Democrata manteve e aumentou as
respectivas maiorias no Senado e na Câmara.
Em consequência, e valendo-se da
inexperiência política do jovem presidente, assim como da hubris decorrente do
avassalador triunfo em 2008, os democratas comemoraram por demasiado
tempo no biênio subsequente, enquanto os republicanos, temendo domínio
democrata de longo prazo, passaram a pensar nos meios, digamos administrativos,
de reverter o quadro.
Infelizmente, o Partido Republicano
teve êxito no seu projeto de gerrymander
nacional. O que é o gerrymander (que tem o nome de um governador de
Massachsetts que foi quem iniciou esta falcatrua política)? Ele basicamente consiste
em redesenhar os limites dos distritos eleitorais, de forma que as maiorias
adversárias sejam confinadas em poucos distritos, enquanto se re-traçam no
estado os 'novos limites dos distritos'. Essa fraude, que hoje se vale do perfeicionismo do cálculo digital, visa basicamente o seguinte: confinar as
áreas democratas em poucos e gordos distritos, enquanto as áreas republicanas,
convenientemente redesenhadas, produzem a maioria estadual de representantes
republicanos.
Nos Estados Unidos há um
recenseamento a cada dez anos, e por fortuna do GOP, e de seus poucos
escrúpulos, essa data legal caíu no segundo ano da Administração Obama, em que
reinava a inexperiência presidencial - a par de vitórias emblemáticas na
aprovação pelo Congresso democrata da Reformas da Saúde e de Wall Street (a
parte financeira). Com a ajuda dos irmãos Koch, que já conhecemos bem, surgiu o movimento 'popular de base' de ultra-direita do Tea Party. A maior representação nas câmaras estaduais do Partido Republicano criou os meios indispensáveis, para implementar os seus propósitos ilícitos de gerrymander da Câmara. O Senado, por
sorte dos democratas, está fora disso, porque é escolhido pelo voto universal
de cada estado. Assim, excetuados meios mais violentos (como amedrontar os
opositores, etc. etc) não há jeito de criar condições estáveis para garantir as
vitórias respectivas, salvo o convencimento do corpo eleitoral. E, isso
convenhamos, torna qualquer projeto nesse sentido bem mais complicado...
Enquanto o Partido Democrata
dormia sobre os respectivos louros, os republicanos puseram mãos a obra e
lograram por meios legais espantosa vitória na votação para a Câmara de
Representantes. Ganharam mais 63 cadeiras nessa Câmara, alcançando a maioria,
assim como mais seis cadeiras no Senado, ficando aqui com minoria mais robusta.
Com a maioria na Câmara, e
as vitórias obtidas nos Estados, o GOP poderia passar para a fase dois do
projeto. Com a votação de 2010 em eleição intermediária, em que existe menor
afluxo de eleitores e, portanto, a abstenção cresce, os republicanos lograram
em grande número de estados redesenhar os novos distritos eleitorais. Tudo isso foi coordenado por um projeto nacional,
o Redmap, que tinha grandes ambições (ainda que
inconfessáveis) e que infelizmente logrou êxito, com o GOP ganhando em muitos
estados a maioria necessária para redesenhar os mapas e tornar as eleições
meras formalidades no futuro.
Para que se tenha idéia do
triste êxito republicano em distorcer de modo fraudulento (mas permanente
enquanto dure), a eleição feita por distritos redesenhados pelo GOP teve os seguintes resultados: os
Democratas lograram 1 milhão e quinhentos
mil votos a mais para o Congresso do que os arrebanhados pelos
republicanos, e no entanto perderam! A Câmara de Representantes continuou com a
sua maioria fajuta do GOP de trinta e três cadeiras a mais do que a bancada
democrata!
O mais grave de tudo, a
meu modesto ver, é que o escândalo do gerrymander em nível nacional é passado em
silêncio pela grande mídia. Ele não é sequer mencionado. Artigos como esse de
Elizabeth Drew são extremamente raros. A
grande imprensa e os articulistas políticos tratam esse escândalo silencioso da adulteração do
voto popular, e da criação de falsas maiorias - como nos antigos burgos podres
da Inglaterra. O que mais perturba nessa democracia americana é que esse
fenômeno dos burgos podres terminou nas primeiras décadas do século XIX, no
Reino de Sua Majestade Britânica. Enquanto isso o gerrymander americano por ora
vai bem, obrigado, enquanto o Partido Republicano logra por seu intermédio
controlar na prática o Legislativo. A despeito de que a maioria no Senado seja
livremente disputada (atualmente o GOP tem a maioria também na Câmara alta, e
tal maioria é autêntica), já na Câmara temos um feudo republicano, que resultou
para Obama (e para a Nação americana) na virtual paralisia do Legislativo para
os grandes projetos, em que os senhores deputados republicanos os têm brecado
com comovente firmeza, embora essa minoria - e põe minoria nisso! - barra
reformas necessárias, e mesmo indispensáveis, como a da imigração por exemplo.
Enquanto a grande imprensa e a mídia
continuarem com a sua postura de avestruz diante desta incômoda realidade, não
haverá a conscientização necessária para anular esse projeto fraudulento de
governo que o GOP tem conseguido manter desde 2012, para a alegria dos Irmãos
Koch e de outros gordos gatos pingados.
(
Fonte: artigo de Elizabeth Drew em The New York Review of Books, datado de 18
de agosto - 28 de setembro de 2016, sob o título "Traída a Democracia
Americana" ).
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