A
vinda para o Rio de Janeiro foi feita por um navio da Costeira. Recordo-me que
também veio a família de meu tio Toninho. Ao contrário de minha mãe e eu, os
Mendes vinham de férias. Esse período
foi decerto escolhido adrede por mamãe. Assim, eu não perderia dias no colégio,
enquanto se acertava o desafio da transferência escolar para a capital da
República.
Vivíamos então no governo do general
Eurico Dutra. Salvo o enjôo de minha mãe - naquele tempo, não creio que
houvesse o remédio Dramamine -, tudo transcorreu sem surpresas, e tampouco sem
temporais.
Chegamos ainda em julho ao Rio, e a
princípio ficamos no hotel Praia Leme, que foi aquele também escolhido por
Toninho e família. Assim, no período das férias de meio de ano, minha mãe terá
acertado a transferência para o Colégio Anglo-Americano, sediado em amplo
terreno na praia de Botafogo. Não muito mais tarde seria construído á sua
direita o prédio onde ficaria o Department Store da Sears, que deve ter sido um
dos primeiros grandes magazines americanos a vir para a então capital.
Estava eu no Anchieta, um dos melhores
estabelecimentos de ensino secundário de Porto Alegre. A intenção inicial era
matricular-me no Santo Inácio, mas tal se mostrou fora do orçamento de minha
mãe viúva. Teve ela, por conseguinte, de escolher a segunda alternativa. Fui
para colégio de classe média, que tinha decerto bons professores, e não cobrava
a mensalidade dos jesuítas, que na rua São Clemente também em Botafogo era
considerado entre os melhores, senão o melhor, colégio secundário do Rio de
Janeiro.
Achava-me então na encruzilhada do
Admissão, que naquele tempo - e como mudam com o subdesenvolvimento os esquemas
escolares no Brasil! - era a porta de entrada do ginásio.
Se em Porto Alegre estava entre os
melhores da classe, minha mãe e eu logo nos daríamos conta da grande diferença
no currículo do Rio Grande para a capital. E o meu primeiro teste logo
mostraria o quão atrasado me achava em relação ao currículo praticado no
Anglo-Americano.
Como não tínhamos maiores
disponibilidades financeiras - peço desculpas por aludir amiúde a essa condição
de relativa penúria, mas tal desafio equivalia a elefante branco postado na
sala de visitas: não havia maneira de evitá-lo... - o jeito foi que mamãe me
ajudasse como "instrutora" de manhã, para capacitar-me a de tarde
enfrentar o admissão no Anglo-Americano.
A princípio, foi bastante difícil.
Minhas notas nos testes do colégio carioca, começaram muito baixas. Era um verdadeiro escândalo a abissal
diferença entre o Rio Grande e o Rio de Janeiro, em matéria de currículo
escolar. De certa forma, eu pagava o pato, tendo de aguentar as broncas de
minha mãe Maria. Tinha a noção - apesar de ainda criança - que alguma coisa
devia estar errada. Como é que estava entre os primeiros da classe no Anchieta,
disputando amiúde os 'prêmios' que aquele colégio de jesuítas oferecia aos seus
alunos porto-alegrenses, para de repente, ter de aguentar as repreensões
maternas, pelas minhas baixíssimas notas no admissão do Rio de Janeiro?
Conforme ao meu temperamento que
procurava ser cordato nas 'aulas' maternas, confusamente consciente talvez que
ela também se sentisse pressionada pela diferença nos currículos, em geral eu
aguentava em silêncio as repreensões maternas, conquanto a injustiça da
situação principiasse a aparecer-me nos seus óbvios contornos.
E minha mãe, por mais nervosa que
estivesse (não tínhamos obviamente dinheiro para pagar aulas particulares),
tinha que fazer das tripas coração.
Aos poucos, ela foi ficando mais
calma, e eu de minha parte tratei de enfrentar o desafio. No final, eu conseguiria passar no admissão
do Anglo-Americano, e adentraria o primeiro ano do ginasial. Por conta da
brutal disparidade nos currículos, as minhas notas não estariam entre as
primeiras, mas tampouco passei raspando.
Estava afinal no primeiro ano do ginásio, e para esse feito não ignorava
que o devia em parte a minha professora particular, a própria mãe, e por outro
lado, a mim próprio, que encarei o desafio e ao vencê-lo, adentrei o primeiro
ano ginasial já entre os primeiros, livre do exemplo dos retardatários que, em
geral, ficam nas últimas carteiras da classe.
Vencido o Admissão, minha mãe e eu
também nos livramos da condição de hóspedes. Com sacrifício, ela comprou três presentões
(entre eles, máquina de costura nova, cortes de tecidos finos) para a sua irmã
Marina, que a hospedara no apartamento da Antonio Carlos em que vivia com o
marido Américo Laporta.
Minha mãe sempre me deu esse
exemplo. O favor dos parentes, mesmo próximos, deve ser aceito, mas retribuído
a seu tempo, e de forma digna.
Com o habite-se do prédio na Av.
N.S. de Copacabana, entre a Júlio de Castilhos e a Francisco Sá, e portanto no
posto 6, abria-se para nós o apartamento de frente, no nono andar, do edifício Satélite.
Quando adentramos o imóvel, ainda
havia operários no prédio... Minha tia Lucy ajudou mamãe a dar um jeito no seu apartamento, que era de frente e no
nono andar. Ainda faltava uma boa parte para ser paga, conforme o contrato de
compra e venda.
Minha mãe, que antes tinha carro na
porta, e casa de eira e beira, não perdia tempo em choramingos. Graças aos bens
do meu avô que eu herdara, ela podia sustentar-se, como dona de casa (nunca
teve empregada, e por isso, mais tarde, pagaria caro). Também minha avó materna,
Cidalizia Vaz Dias Mendes, passara a morar conosco, e por isso ajudava
financeiramene. Mas, por vezes, a coisa ficava preta, e mamãe teve de admitir um
casal como hóspede no apartamento.
Mas com a graça de Deus, e o
trabalho materno, isso foi necessário apenas por uns dois ou três meses. Doía
ver minha mãe levar de manhã, na bandeja, o café matinal para a dupla de hóspedes.
Em breve, a crise foi vencida pelo
trabalho aturado. E, por fim, veria minha mãe vencer o desafio e não mais
precisar desse gênero de honesto recurso.
E dizer-se que meu avô conseguira
pensão extraordinária para a sua nora Maria (e o neto Mauro, que os poderes da
República logo colocaram na dita pensão, de forma a que a viúva do
engenheiro-civil José Raphael de Azeredo, morto a serviço em desastre de
aviação em 20 de junho de 1944, só dispusesse de tal pensão plena até a
maioridade minha aos dezoito anos!). Sem dizer que a invejável pensão em 1944, de
um conto de réis, não tardaria a ser comida pelos ratos da inflação...
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