Meus tios me deram uma bicicleta
Hércules, de fabricação inglesa, com que
passeava pelas ruas tranquilas do Jardim Europa, durante as nossas estadas em
São Paulo.
Não há muitos registros das minhas atividades
ciclistas. Só uma solitária foto, saindo de mansão que não era nossa... Não por
ser longe, mas pela pista irregular e escorregadia, a pedido de minha mãe, não pedalava
até o clube Pinheiros - meu padrinho era sócio, e graças a ele tinha ingresso
livre nesse grêmio.
Então ficava em rua sem asfalto, se
saísse pelo Jardim Europa, através do
balão com o ponto final dos bondes. Havia um bar bem por perto, onde às vezes
tomava, nas tardes mais frias, xícara de chocolate quente. Às costas, a avenida
das Nações, via que me era defesa pela cautela materna. Poucas vezes
atravessava aqueles espaços trepidantes, e tampouco nas calçadas fronteiras, do
lado de Pinheiros. A razão era o meio-fio, alto em demasia para os aros da
bicicleta. Como, mesmo naqueles tempos primevos, ali já houvesse certo
trânsito, minha mãe se preocupava com os eventuais perigos de me aventurar por tais espaços.
Entretanto, comparar o caos do
trânsito paulistano de hoje com a aprazível, quase bucólica atmosfera que se
abria aos que demandavam o velho clube alemão - renomeado às pressas, às
vésperas do conflito com as potências do Eixo - com a realidade hodierna, em
que o automóvel e, sobretudo, a especulação imobiliária varreu do mapa a
prazerosa ambiência dos Jardins - mormente o Europa, seria tarefa pouco agradavel...
Já referi da ida - tolo
que fui! - ao Jardim Europa para rever um dos bairros da minha juventude. Caiu-me,
ao invés, a melancolia de suas ruas desertas, nos espaços encolhidos pelo
império da segurança burguesa, com seus telhados muros divisórios, suas altas cercas de arame farpado, sua
burguesa negação de espaços livres para a garotada, enfim mal-disfarçado
ambiente do medo dos endinheirados, e seus macambúzios bastiões.
Então pensei naqueles anos que
não voltam mais, nos meus passeios a dois com a irmã de Beto e Sérgio. Íamos em nossas bicicletas cruzando os
espaços de jardins e calçadas bem-cuidadas. As ruas, até as persianas, no
traçado quase sonolento do Jardim Europa, sequer nos olhavam, como aquelas
batidas pela soleira, nas cidadezinhas de Drummond. Nem as janelas espiavam. E
eu, desdenhando as mostras e os doces sorrisos de Carmen, minha ciclista
companheira, que me dava toda a impressão de ter um certo fraco por aquele
bissexto acompanhante, que todos os anos aparecia, até nunca mais voltar.
Ali não caíam neves, e só as
aves cruzavam o nosso silêncio a dois, tão prenhe de frases não ditas, tão
sossegado e próximo, e, no entanto, sobre ele pairavam imagens de futuro que
não seria nosso, por tudo e por nada, mas em especial pelo simples fato de que
aquela experiência seria única, igual à atmosfera serena dos anos que passaram
e não voltam mais.
Por isso, muitos anos mais
tarde, só posso repetir o homérico tolo
que fui. Naquele silêncio, que as árvores e os jardins particulares
observavam, de que me serviria uma patética caminhada por espaços desfigurados
pelas rugas não da senectude, mas do cruel império do tempo, que me fazia
entender profundamente aquele citado personagem de René Clair que, no carrossel
das estações, clamava pelos bons, velhos anos que o passado enterrara e que não voltam mais nunca !
A vos risques et périls[1],
teria sido o meu erro de pensar possível desenterrar o passado em caminhada por
bairro que já esquecera, deformado que
está pelo modo com que o tratam e pelo bárbaro progresso, - detestado pelo fotógrafo Atget - que, na desordem,
espalha rugas na gente, fissuras nas paredes, e temor nas casas fechadas diante
do ignoto, tão anunciado quanto sabido no que se propõe.
Tinha pensado possível
reeditar a brincadeira de bancar o explorador, não mais do presente, mas do
tempo pretérito, justamente aquele que não volta mais. Tudo isso a poucos metros
das casas de referência... Como imaginá-lo se não mais existem a vegetação do
silvestre citadino, os pinheiros e as demais árvores, daqueles espaços
irregulares ainda livres da especulação imobiliária, e, anos mais tarde, da
invasão da segurança, com os seus hediondos muros protetores, que, na verdade, sinalizam as regressões
impossíveis.
Como eram verdes os nossos terrenos baldios,
como nos deixavam vogar à deriva, sem
outro cuidado que o tinir da sineta, o banho ritual e a ceia que mãos calosas
nos preparavam com a bondade de outros tempos...
(Fontes: Homero,
Eugène Atget, Richard Llewellyn, René Clair e Carlos Drummond de Andrade )
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