sábado, 10 de setembro de 2016

Lembranças do Padrinho Chico (IV)

                              

         Notícia ruim corre depressa. O  Lockheed Electra caíra no Guaíba, perto da Pedra Redonda, na terça feira, quinze para o meio-dia de 20 de junho de 1944. Nesta mesma terça, meu tio Chico, ainda no começo da tarde, terá sido avisado, e de algum modo, depois de falar com a esposa Deborah, logrou providenciar passagens em avião da Varig, com voo no dia seguinte para Porto Alegre.
         Não terá sido fácil encontrar dois lugares com apenas um dia de antecedência. Além de sofrer as consequências da guerra, os voos no Brasil daquele tempo não tinham a frequência a que nos habituou o progresso.
         Não sei o que a madrinha Bi disse para a irmã naquela hora terrível. O mais provável é que tenha evitado de inteirá-la de toda a dura, cruel  brutalidade. Contudo, minha mãe não poderia deixar de não  suspeitar de o que realmente havia acontecido. É muito humano, no entanto, que a companheira de um casamento feliz como era o dos meus pais haja abraçado com sofreguidão a versão menos dolorosa, em que a esperança ali estava para sorrir-lhe, enquanto murmurava junto a seus ouvidos que o marido José Raphael sofrera lesões. Felizmente, malgrado todas as aparências, ele teria escapado do pior...
          A mim, coube a comunicação reservada às crianças. Papai escapara. Não sei se, com o natural espanto, haja perguntado mais. Os adultos - sobretudo os daqueles anos - não perdiam muito tempo com esta turminha. Um leve tapa na cabeça, e lá estava o que se podia dizer para um menino. Não sei se hoje será diferente. Quero crer que o diálogo com os menores terá aumentado, mas tenho muitas dúvidas quanto à conveniência de trazer este tipo de notícia a um gurizinho, que mal entrara na escola.
           De qualquer forma, no dia seguinte, os tios nos levaram ao aeroporto de Congonhas, de onde saíam os vôos à hélice daquele tempo. Estava meio assustado, porque esperávamos a chegada de meu pai José Raphael para aquela mesma semana. E não podia deixar de perguntar-me o que teria acontecido com ele. Mas viajei para o Sul embalado na doce ilusão de que, de alguma maneira, papai estaria a esperar-nos. Então tudo ficaria explicado...
             O voo da aeronave da VARIG passou  a maior parte do transcurso em meio às nuvens de um aziago temporal. Ouvi que era avião moderno, mas apesar disso e das múltiplas hélices - tinha duas de cada lado das asas - levou bem mais de três horas para completar a triste viagem da volta...
             Minha mãe chorava muito e, por vezes, gritava. Criança que era, não sabia o que fazer daquilo, mas algo me dizia que coisa muito grave acontecera ou ía acontecer. Hoje, passado tanto  tempo daquele desgraçado vôo, eu contemplava minha mãe do outro lado da cabine - alguma aeromoça me levou, criança ainda que era, para a poltrona oposta. Porque o fazia, não sei, mas talvez para manter-me meio distante de minha mãe. Olhava para tudo aquilo - os clamores maternos, a chuva a cair paciente e pesada nas asas do aparelho, o monótono, monocórdio avanço das hélices - sem nada entender ou pelo menos não conseguindo explicar-me o que estava acontecendo.
             Seria como se criança ainda me estivessem levando e não para casa. Como poderia eu pensar que a normalidade seria aquele temporal que enfrentávamos, e a atitude de minha mãe  - a quem nunca vira proceder de tamanho jeito e maneira - enquanto o avião, na sua lenta, barulhenta trajetória, os motores a carregá-lo no tardo avanço, enquanto as ruidosas hélices  rodavam indiferentes na sua exasperante monotonia. Que podia eu entender de todo aquele escarcéu, a mim que criança ainda me afastaram daquela que, carinhosa sempre me retinha a seu lado durante as poucas viagens feitas num passado sem história, mas sempre próximo do terno e amoroso casal a que chamava - e não diferente das demais crianças - de pai e mãe.
              Como poderia, então, entender que essa mãe pudesse clamar daquela maneira ? Na longa, interminável jornada em que vira cortada a estada em São Paulo, como se tivéssemos de repente de voltar a Porto Alegre, para apanhar meu pai e,com ele, seguir de volta  para a viagem ao Rio de Janeiro. Então, porque todo o choro, todos os gritos que eu ouvia, alguns até que me doíam escutar? Lá no meu bestunto de criança, eu queria compreender.  Que estava  afinal acontecendo com a minha Mãe?
                Ao chegar por fim ao aeroporto de Porto Alegre, lembro-me só que alguém me pegou no colo, enquanto o compadre Geraldo cuidava da minha mãe.
                 Naquele tempo, os viajantes pronto chegavam ao solo, e não se perdiam no dédalo de corredores que hoje os espera nos aeroportos que são grandes, enormes mesmo, mas tenho lá para mim que esse crescimento está mais para abrigar a gigantesca burocracia que neles se aninhou.
                  De toda maneira, seguimos ambos, levados pelo carinho e amizade dos compadres Geraldo e Vivina Bohrer. Na minha memória, ficou muito presente a imagem do tio, ainda mais cordial e atento do que de hábito, de pé no tarmac, junto da escadinha. Hoje, tantas décadas depois, penso na afabilidade amiga com que esse casal tão nosso conhecido nos acolheu. E nessa distância do tempo, lhes entendo a amizade expressa por aquela ternura. Para tanto sofrimento, eles tinham o cuidado de não mais sufocar a duplinha a que tanto de mau pedaço esperava pela frente.

( Fontes suplementares: Correio do Povo, Bernardim Ribeiro)

     

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