terça-feira, 6 de setembro de 2016

Lembranças de meu padrinho Chico (III)

                   
                        

        Em meados de 1944, minha mãe me trouxe de avião para São Paulo, onde ficaríamos na casa dos padrinhos, Chico e Bi.  Tinham comprado residência no Jardim Europa, na rua Turquia, 26, de que bem me lembro.
        Havia um colégio de freiras em frente, ocupando boa parte do quarteirão e ainda muitos terrenos baldios. A casa dos tios tinha altos e baixos, e era em estilo normando. Com jardim na frente, e atrás o quintal - onde se quarava a roupa e a criançada podia brincar. Ao lado da cozinha, que tinha porta com tela, dependências para  empregada e a garagem em que não havia carro, pois meu padrinho fazia parte da diretoria, e vinha chofer todo dia útil para levá-lo à Swift, cuja sede ficava perto do vale do Anhangabau.
        A casa era uma das últimas da rua Turquia. À esquerda, ao lado de transversal, ficava avenida larga e movimentada. Naquele tempo, ela ladeava um córrego , na  outra margem havia bairro mais modesto, o Itaim. Mais para cima, no sentido do centro, ele acabava em espécie de piscinão.
        Em geral, por proibição dos pais, as crianças do Jardim Europa, e da rua Turquia em particular, não atravessavam para o outro lado.
       Na esquina, com a casa dos tios à direita, ficava outra residência em terreno menor. Lá morava casal meio estranho, que abrigava um número excessivo de gatos. Se as contagens não podiam ser precisas, estavam por volta de uma dúzia, pelo menos. Incomodavam bastante os vizinhos próximos e sobretudo os tios, porque se serviam das cadeiras forradas do jardim, com os resultados previsíveis.    
        A reunião familiar estava programada mais ou menos assim. Minha mãe e eu chegamos antes, e lá na Paulicéia iriamos esperar meu pai. Ele, depois de estar uns dias em São Paulo, nos levaria para o Rio de Janeiro, aonde nos esperavam as duas outras irmãs de minha mãe e da madrinha Bi, a saber Lucy e Marina, com os respectivos maridos, Adolpho Bloch e Américo Laporta.
          Suponho que José Raphael de Azeredo, meu pai, não pôde seguir conosco, porque tinha compromissos de trabalho.  Apesar de muito moço - tinha trinta e seis anos de idade - já era chefe no Rio Grande do Sul do Serviço de Portos, Rios e Canais do então Ministério da Viação.
         A reunião familiar, no entanto, estava prevista e deveria incluir as quatro irmãs Mendes - Deborah, Maria, Lucy e Marina. A ideia era, portanto, que os Azeredo seguissem para o Rio, acompanhados para o fim de semana por Deborah e, se possível  meu padrinho,  se encontrariam todos na capital da República.
           Entretanto, as irmãs esqueceram de combinar com as Parcas e a tal reunião familiar jamais se realizaria.
           Entrementes, no dia vinte de junho de 1944, meu tio Antonio Mendes Netto levou meu pai ao aeroporto de Pelotas, aonde ele apanharia o voo da Varig para Porto Alegre. Chegaram atrasados ao campo de voo, e foi na correria, com ajuda de Toninho, que papai lograria embarcar no novo modelo Electra,  da Lockheed, com asas curtas.
            A portinhola de entrada se estava fechando, e ele foi o último a adentrar a cabine do avião, que tinha lotação prevista de dez passageiros.
             A aeronave da Lockheed era novíssima aquisição da Varig, e para a época, passava por ser muito rápida. Naquele tempo, os aviões não tinham altímetro. Se já  o tivessem, o desastre não teria ocorrido.
              Por conta de  forte aguaceiro que caíu sobre Porto Alegre na hora da chegada do vôo, a visibilidade era muito ruim. Com efeito, o chofer do carro de meu avô, Romualdo Mattos de Azeredo, enganou-se de rua e, por isso, penou para dar com a entrada do aeroporto.
              Por outro lado, segundo testemunhas do local da Pedra Redonda, o avião passou em voo rasante pela área, sinal de que a visibilidade estava péssima. Há mesmo relato de que o comandante Ricardo Lau do avião terá confundido a água do Guaíba com a atmosfera. É bom recordar que naquela época os aviões ainda não  estavam equipados de altímetro.
               De qualquer forma o choque foi fortíssimo, adentrando a pequena aeronave com velocidade de cruzeiro contra as águas do Guaíba, que ali são bastante rasas.  O choque foi fortíssimo e todos os passageiros e tripulantes (além do piloto, havia o co-piloto Frederico Hachwart) tiveram morte instantânea.  O relógio - um cebolão - que meu pai me trazia como presente marca quinze minutos para o meio-dia.
                  Há uma série de outras lembranças que ele havia destinado para mim.  Para meu pai, eles simbolizavam a minha passagem de guri para menino: sela e material de montaria; assim como, a cuia e a bomba            do chimarrão.
                   O destino aziago as tornaria inutilizáveis, como se fossem restos de um naufrágio.


( Fonte: Correio do Povo, de 21 de junho de 1944 )

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