Em meados de 1944,
minha mãe me trouxe de avião para São Paulo, onde ficaríamos na casa dos
padrinhos, Chico e Bi. Tinham comprado
residência no Jardim Europa, na rua Turquia, 26, de que bem me lembro.
Havia um colégio de freiras em frente,
ocupando boa parte do quarteirão e ainda muitos terrenos baldios. A casa dos
tios tinha altos e baixos, e era em estilo normando. Com jardim na frente, e
atrás o quintal - onde se quarava a roupa e a criançada podia brincar. Ao lado
da cozinha, que tinha porta com tela, dependências para empregada e a garagem
em que não havia carro, pois meu padrinho fazia parte da diretoria, e vinha
chofer todo dia útil para levá-lo à Swift,
cuja sede ficava perto do vale do Anhangabau.
A casa era uma das últimas da rua
Turquia. À esquerda, ao lado de transversal, ficava avenida larga e
movimentada. Naquele tempo, ela ladeava um córrego , na outra margem havia bairro mais modesto, o
Itaim. Mais para cima, no sentido do centro, ele acabava em espécie de
piscinão.
Em geral, por proibição dos pais, as
crianças do Jardim Europa, e da rua Turquia em particular, não atravessavam
para o outro lado.
Na esquina, com a casa dos tios à
direita, ficava outra residência em terreno menor. Lá morava casal meio
estranho, que abrigava um número excessivo de gatos. Se as contagens não podiam
ser precisas, estavam por volta de uma dúzia, pelo menos. Incomodavam bastante
os vizinhos próximos e sobretudo os tios, porque se serviam das cadeiras
forradas do jardim, com os resultados previsíveis.
A
reunião familiar estava programada mais ou menos assim. Minha mãe e eu chegamos
antes, e lá na Paulicéia iriamos esperar meu pai. Ele, depois de estar uns dias
em São Paulo, nos levaria para o Rio de Janeiro, aonde nos esperavam as duas
outras irmãs de minha mãe e da madrinha Bi, a saber Lucy e Marina, com os
respectivos maridos, Adolpho Bloch e Américo Laporta.
Suponho que José Raphael de Azeredo,
meu pai, não pôde seguir conosco, porque tinha compromissos de trabalho. Apesar de muito moço - tinha trinta e seis
anos de idade - já era chefe no Rio Grande do Sul do Serviço de Portos, Rios e
Canais do então Ministério da Viação.
A reunião familiar, no entanto, estava
prevista e deveria incluir as quatro irmãs Mendes - Deborah, Maria, Lucy e
Marina. A ideia era, portanto, que os Azeredo seguissem para o Rio,
acompanhados para o fim de semana por Deborah e, se possível meu padrinho, se encontrariam todos na capital da República.
Entretanto, as irmãs esqueceram de
combinar com as Parcas e a tal reunião familiar jamais se realizaria.
Entrementes, no dia vinte de junho
de 1944, meu tio Antonio Mendes Netto levou meu pai ao aeroporto de Pelotas,
aonde ele apanharia o voo da Varig para Porto Alegre. Chegaram atrasados ao
campo de voo, e foi na correria, com ajuda de Toninho, que papai lograria
embarcar no novo modelo Electra, da
Lockheed, com asas curtas.
A portinhola de entrada se estava
fechando, e ele foi o último a adentrar a cabine do avião, que tinha lotação prevista
de dez passageiros.
A aeronave da Lockheed era novíssima aquisição da Varig, e para a época, passava por ser muito rápida. Naquele tempo,
os aviões não tinham altímetro. Se já o
tivessem, o desastre não teria ocorrido.
Por conta de forte aguaceiro que caíu sobre Porto Alegre na
hora da chegada do vôo, a visibilidade era muito ruim. Com efeito, o chofer do
carro de meu avô, Romualdo Mattos de Azeredo, enganou-se de rua e, por isso,
penou para dar com a entrada do aeroporto.
Por outro lado, segundo
testemunhas do local da Pedra Redonda, o avião passou em voo rasante pela área,
sinal de que a visibilidade estava péssima. Há mesmo relato de que o comandante
Ricardo Lau do avião terá confundido a água do Guaíba com a atmosfera. É bom
recordar que naquela época os aviões ainda não
estavam equipados de altímetro.
De qualquer forma o choque foi
fortíssimo, adentrando a pequena aeronave com velocidade de cruzeiro contra as
águas do Guaíba, que ali são bastante rasas.
O choque foi fortíssimo e todos os passageiros e tripulantes (além do
piloto, havia o co-piloto Frederico Hachwart) tiveram morte instantânea. O relógio - um cebolão - que meu pai me
trazia como presente marca quinze minutos para o meio-dia.
Há uma série de outras
lembranças que ele havia destinado para mim.
Para meu pai, eles simbolizavam a minha passagem de guri para menino:
sela e material de montaria; assim como, a cuia e a bomba do chimarrão.
O destino aziago as tornaria
inutilizáveis, como se fossem restos de um naufrágio.
(
Fonte: Correio do Povo, de 21 de junho de 1944 )
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