Nada acontece por acaso
na história dos povos e dos Estados. Tome-se o caso inglês, por exemplo.
Grandes vultos já estiveram em Downing Street 10. A própria reação da elite
inglesa em não acomodar-se com o brutal veto do general Charles de Gaulle ao
ingresso do Reino Unido no Mercado Comum não aconteceu por um capricho da
História. A elite inglesa - incluindo conservadores e trabalhistas - via o
desafio da Comunidade Econômica Europeia e depois de buscar a saída por meio de
uma associação livre de países, o que não lhes satisfez - eis que desejavam o
melhor para a velha Álbion - tão logo o velho general tivesse saído do poder
cuidaram de agilizar a melhor solução para o próprio país.
A queda na qualidade da liderança
inglesa não carece de maiores demonstrações práticas, uma vez que dispomos de
duas amostras que nos parecem bastantes - como já referido neste blog - para dar uma ideia bastante veraz
do nível da qualidade desses líderes políticos atuais na antiga rainha dos
mares.
Tony
Blair - e me atenho apenas ao seu capítulo europeu - concordou em realizar
um referendo por motivos menores, e quis a sorte - que costuma favorecer aos
que têm valor - que a sua consulta terminasse com a confirmação da presença
inglesa em Bruxelas. Sem embargo, essa colocação em jogo de um trunfo que havia
sido considerado vital pelos seus antecessores, contemporâneos do velho general,
tornara de uma certa forma possível a
repetição de tal disparate (se tivermos presente que a opção da união com a
Europa continuasse tão válida, quanto ao tempo do ingresso de Londres no
organismo de Bruxelas). Blair, ao
colocar em risco a conquista anterior - a participação plena no mercado comum
europeu - reduzira a relevância do trunfo proporcionado pelo Mercado Comum
Europeu como opção que de indispensável passara a descartável em determinadas
circunstâncias. Dando-se conta ou não,
Blair admitia a realidade de que o Reino Unido poderia prescindir da Comunidade
Europeia, reassumindo um velho princípio caro ao isolacionismo da Grande
Potência Inglaterra, graças ao próprio Império - onde outrora o sol nunca se
punha, e que dispunha da mais poderosa marinha de guerra. Duas guerras mundiais - que, sem embargo,
vencera - poderiam embalar-lhe na ilusão de que o isolamento continuava
possível, mas não foram bastante para deter um grupo de trabalhistas e
conservadores que, cientes das novas realidades, não trepidaram em considerar viável o ingresso no mercado comum.
A
imprudência de Tony Blair, ainda que evitada, sinalizaria como possível para
mentes menores a possibilidade de desfazer a união com a Europa como opção
perene para o Reino Unido. E aí está o erro de David Cameron - tornado possível com um referendo marcado por
ultra-medíocre maioria, e ainda por cima em período estival - que funcionaria
tristemente como progressão geométrica para fazer retroceder a velha
Inglaterra. De algo intocável - não imagino os líderes ingleses do tempo pós-de
Gaulle convivendo com essa hipótese de retrocesso - Blair banalizara o recurso
que transformara como opção válida, possível, e foi isto que viabilizaria
que gente menos dotada em Downing Street 10 caísse nessa esparrela.
Por
isso, a atual liderança britânica representada por Theresa May espelha a mediocridade
para quem Tony Blair abrira a porta, que seria utilizada, com os previsíveis calamitosos
resultados por espécimes da decadência imperial, como David Cameron e outros
políticos menores, como os gêmeos Johnson, que estão interessados no poder nu e
cru, sem outras considerações capazes de motivar políticos conservadores (ou
trabalhistas) em meados do século XX.
Nesses termos, que podem ser cruéis para a juventude inglesa que se vê cerrarem as condições - e oportunidades -
anteriores, favoráveis a horizontes mais largos e mais propícios à fruição da
realidade mega-europeia, e não do medíocre particularismo da pequeno-burguesia
que agrada aos políticos da triste vindima do fatídico referendo de 2016.
O irresponsável jogo referendário só
poderia terminar no triste espetáculo que ora se nos depara, com a May que
continua no assento de Primeiro
Ministro, a despeito dos inúmeros tropeços e vexames sofridos. Como todos os medíocres, as considerações de
valor não são para ela critérios permanentes, mas apenas trompaços e escorregões
que ela conta superar pela própria aderência ao poder nu e cru. A ex-secretária do Interior acredita ter a
qualidade da sobrevivência, mas com a própria visão prejudicada pelos limites
de sua capacidade intelectual, crê piamente que a sua solução é a melhor para o
Reino Unido, enquanto desaparece de seu entorno visual uma realidade
gerenciável pelas novas gerações, e que é substituída por trôpegas e
elementares construções que, mais cedo ou mais tarde, pelo acúmulo de estorvos
aduaneiros e de infernal mentalidade pequeno-burguesa ora multiplicada pelo monturo
dessas duanas promete o inferno da
burocracia para uma juventude que ousara sonhar com a abertura de horizontes
acadêmicos e edênicos centros de artes e saber realmente sem fronteiras, e
livre enfim dos pequenos burocratas, que hoje se escondem por trás de
computadores, na medida em que tais
aparelhos só possam repetir-lhes suas
tacanhas, míopes realidades a que o sorriso vazio dessa personalidade a que a
sorte madrasta entregou o destino de uma juventude e da intelectualidade que
acreditara, por momento brevíssimo, ter acesso a uma realidade de sonho, a que
o burocratismo de Theresa May porá um inglório mas turbador fim. Quantas
iluminantes mocidades, ora perdidas em pesadelos burocráticos, há de cobrar esta
manipulação irresponsável de um jogo que tão só reproduz o pesadelo gerado por
mediocridade sem limites e sem as ilusões criadoras de um porvir digno de ser
vivenciado?
(Fontes: The Independent, The Economist )