quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

O Escândalo da Censura

Se pouco tempo depois da promulgação da Constituição Cidadã, a cinco de outubro de 1988, se veiculasse a possibilidade de que a Justiça se investisse do triste papel de fautora de censura junto aos meios de comunicação, o que mostrariam constituintes e o Ministro da Justiça, Fernando Lyra, senão largos sorrisos de descrença ? Como poderiam aqueles que afinal acreditavam livre o Brasil da peçonha da censura emprestar crédito a semelhante absurdo ? A par da tortura, a Carta a quem se negou a Ulysses Guimarães a honra de um prefácio, está associada igualmente ao ditame de Censura, nunca mais!
Os que participaram, direta ou indiretamente, de sua redação e aprovação, e os que a saudaram como o fanal da democracia e de sua nova era, não trepidariam em assinalar-lhe entre os galardões, o inciso IX do artigo 5º , e o artigo 220, parágrafo 2º . Pois quem ousaria negar a cláusula pétrea de que “é livre a expressão de atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” , a que se jungem as determinações : “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição” , “vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.”
Tais disposições, se cremos estivessem gravadas no mármore ático das leis imorredouras, hoje são ignoradas ou desvirtuadas não só por juízes de perdidos grotões, mas até por desembargadores e ministros que ousam aguar a planta daninha da chamada censura judicial.
De uns tempos para cá, qual hidra ela está em toda parte, grassando livremente por força de iníquas sentenças. Para combater a criação imortal da Constituição de 1988, carecemos de opinião pública forte, de Congresso que lhe esteja à altura, de juizes e magistrados que não só conheçam, mas respeitem a Carta Magna, de Poder Executivo que execre a praga da censura e de seus parasitas burocráticos.
Acaso precisamos de bons advogados ? O hábil e erudito causídico será sempre útil instrumento, desde que respeite os princípios constitucionais, e despreze todo o sofisma que torne possível o mostrengo inconstitucional.
A censura judicial, esta criação maldita de longa erosão de sagrado princípio da Carta de 1988, acobertada e insuflada pelos desvios e escaninhos de um poder que não se atreve a reivindicar-lhe a autoria, acaba de completar, não uma efeméride – que é reservada a feitos e conquistas memoráveis – mas lôbrego marco.
Mais de duzentos dias decorreram da censura imposta em segunda instância, pelo Desembargador Dácio Vieira, do TJ-DF, que impediu ao jornal Estado de São Paulo publicar notícias relativas à investigação da Polícia Federal sobre a atuação do empresário Fernando Sarney, filho do senador e Presidente do Senado Federal, José Sarney.
Se escândalos existem neste país, é oportuno que este seja assinalado, para retirá-lo do poço do olvido a que parece adrede consignado. É uma vergonha não só para aqueles que contribuíram para a manutenção de tal avantesma dos tempos plúmbeos da ditadura, mas e talvez sobretudo para a falta de uma reação digna do nome dos meios de comunicação. Dir-se-ía a contemplar-lhes o silêncio, seja em palavras, seja em editoriais e comentários, que preferem negar-lhe sequer o perigo, mas a própria existência. Serão os eternos personagens da história que se recusam a intervir, por julgar que a questão não lhes diz respeito. E o que farão, quando sozinhos, os esbirros virão por eles e não por outros ?
Talvez até os próprios advogados do Estado possam ser inculpados, por não saberem, quiçá, rasgar os véus do engano que ajudam a dissimular os traços hediondos da criatura que acusam.
No entanto, o itinerário desta causa se nos apresenta comprido e nada gratificante. Chegou mesmo pelo caminho da liminar às portas do Supremo. E para surpresa de muitos – entre os que me incluo – a Suprema Corte perderia a ocasião de livrar do emaranhado de liames o cristalino princípio. Houve ministros, no entanto, que o tiveram bem presente. Lamentavelmente, estavam em minoria na Corte Constitucional.
Nós que abominamos a censura em todas as suas formas, quer burocráticas, quer judiciais, fazemos votos para que surja desta ínclita minoria o núcleo restaurador da cláusula pétrea do incisivo IX do artigo 5º. Se mais uma vez os advogados do Estado batem à porta do TJ-DF, queremos esperar por agradável e prazerosa surpresa, em que o mérito da sentença liminar do desembargador Dácio Vieira seja julgado, derrubado e por fim reproclamada a vigência do princípio constitucional.
Será porventura acalentar loucas, infundadas esperanças ?

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