Doris (5)
Almir era pessoa de boa paz. Em geral, dava-se bem com todos. Assim, no trabalho e no edifício, sempre se lembravam dele quando surgiam problemas. Plácido, jeitoso, encontrava com naturalidade tom e palavra certa para destrinchar as questões mais enroladas.
Tampouco os conhecidos ignoravam que a sua bonomia tinha limites. O proverbial bom gênio não significava que, em ocasiões isoladas, não reagisse com vivacidade.
Com efeito, tais episódios, pela sua extrema raridade, podiam surpreender os incautos. Quem o praticasse, guardaria a impressão de que o destempero funcionava como espécie de compensação para a postura costumeira, tranquila, paciente e bem-humorada.
Por isso, Almir sabia contornar os frequentes maus bofes da mulher, fosse pelo silêncio, ou pela omissão. No entanto, naquele lar sem crianças, Sonia não confundia mansuetude com fraqueza. Muitos carnavais já haviam transcorrido para que se fizesse ilusões a respeito do marido.
Pela natureza do assunto, decidiu esperar para quando os dois estivessem na cama. Amiúde, se davam boa noite, e cada um virava para o seu lado. Por vezes, contudo, ele se valia desta hora para convencer a esposa da conveniência de determinadas decisões. Seria talvez a sonolência da consorte que lhe aplainava o caminho na maioria das vezes. Certeza, não tinha, porém a coisa funcionava. E com isso evitava atritos e desgastes desnecessários.
“ Sonia, gostaria de pedir um minutinho ainda da tua atenção...”
“ Será que não dá pra tratar disso amanhã ?...”
“ É coisa simples, a gente resolve num pulo.”
“ O que que é ?”
“ Como está a situação da Doris ?”
“ O quê ?!”
Agitada, a mulher se alçara nos cotovelos. Almir continuou deitado.
“ Temos de regularizar a posição dela...”
“ Ora, faça-me o favor... Você virou acaso inspetor sindical ?”
“ Sonia, temos de ajeitar algumas coisas simples... Sinceramente, espero que você esteja exagerando...”
“ Almir, não se faça de santinho... Sabe quanto gastamos com a mulher que a trouxe aqui ?”
Com a mão, ele fez sinal para que baixasse a voz.
“ Você não me consultou pra nada, e portanto não estou interessado em saber. Quando falo de regularizar a situação da menina, é lógico que não me refiro à carteira assinada, INSS, etc. Isso fica pra depois.”
“ Então, pode me informar o que Sua Excelência tá querendo ?”
“ Pra quê esse sarcasmo, Sonia ? O que ‘cê precisa acertar com ela é o salário, a folga semanal e arranjar um uniforme pra a coitada, né ?”
Entrementes, a mulher se levantara e andava à sua frente, como fera enjaulada.
“ Tou vendo que virou porta-voz da Doris... Não acha isso ridículo ? Isto é papel de dona de casa...”
“ Sonia, não banque a desentendida pra cima de mim. Só tou entrando nisso, porque você se tem recusado a tratar do assunto com ela.”
“ Como ! A coisa é ainda pior que eu imaginava. Você virou advogado dela...”
Lépido, Almir pulou da cama e se pôs à frente de Sonia. Incontinente, colocou as mãos nos seus ombros.
“ Meu bem, não vamos perder tempo com rodeios. Nem quero que toda vizinhança saiba que estamos brigando. Me diga, por favor, quais são as suas ideias com relação ao emprego da Doris.”
Ele, sem altear o tom, a olhava firme nos olhos. Ela, por sua vez, baixando a vista, não tentou desvencilhar-se.
“ Não falei isso antes com Você porque pensei que não era o caso. Tenciono que a Doris trabalhe aqui como uma doméstica ao par. Com casa, comida, roupa lavada e inclusive uniforme.”
“ Ao par ? Que que é isso ?”
“ É um arranjo entre patroa e empregada, que é usado na Europa, e que, creio eu, continua a ser praticado em certas regiões do Brasil.”
“ Minha querida, realmente não acreditando no que tou ouvindo. Ao par ?! Olha, isso pode até ser praticado em certas regiões do Brasil, como você diz, só que tem outro nome e é ilegal ...”
Pela reação desconcertada da esposa, Almir intuíu que Sonia realmente estava convencida de que o sistema era factível e até usual.
“ Você acha que não se pode ter uma empregada nessas condições?”
“ Não tenho a menor dúvida, meu bem. Além disso, insistir nisso é correr um risco enorme de denúncia e complicações com sindicatos, justiça trabalhista...”
“ O que é que se faz, então ?”
“ Amanhã, ‘cê chama a Doris e estipula que ela vai ganhar um salário por mês, com direito a uma folga semanal. E não se esquece de dar duas mudas de uniforme pra ela...”
“ E tudo que se gastou com a Genoveva, isso não conta ?”
“ Não, meu bem, não conta mesmo. E não vale a pena esquentar com isso... E, agora, que tal se a gente fosse dormir ?...”
*
sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário