Para quem teve a
fortuna de conhecer o enclave de Hong Kong, enquanto ainda
formalmente colônia de Sua Majestade Britânica, não terá decerto perdido a
oportunidade de pensar sobre os caprichos de uma das últimas investidas do impe-rialismo
ocidental contra o então enfraquecido dragão chinês.
Naquele tempo, visitar Hong Kong era
conhecer um lugar único no mundo, onde o real
estate ainda disputava o que restava de espaço para construir arranha-céus
arrampicados nos morros, na visita aos mercados da cidade-estado, em que o
trabalho frenético e, no entanto, organizado, podia proporcionar ao turista
ocasional, mas também àquele com a inteligência de fruir da ocasião única de
prover o seu guarda-roupa com camisas custom-made,
com eventuais gadgets eletrônicos, e
até com ternos, que em condições extremas, poderiam ser entregues, sem os truques
usuais, na eventual residência do freguês - demorasse em outro continente ou
não - se porventura os prazos não pudessem ser conciliados no tempo hábil da estada, e sem querer espichar exemplos,
numa riqueza de escolhas em que se afirmava a capacidade chinesa para o
comércio, mas também um pouco da veia ocidental do capitalismo tão eficaz
quanto proficiente.
A visita àquela Hong Kong trazia
não só a lembrança, naquele formigueiro humano da indústria (entendida na sua
pluralidade de sentidos) em um ambiente que pelos prazos da diplomacia já
estava - e para muitos, com pesar - na quase prorrogação de uma permanência que
irrompera da extorsão imperialista e se transformara em uma grácil, atraente e
muito especial colonia de Sua Majestade Britânica. Nunca de um propósito tão
reprovável e mesmo ignóbil, viera a surgir aquela criatura, filha muito
legítima das possibilidades, potencialidades do capitalismo imperialista do
século dezenove, quando, com resultados díspares, se lançaram sobre o que
pensavam fora a carcaça de um império decadente, os invasores ingleses, alemães,
franceses (o colonialismo português já estava em Macau faz muito).
Sem pendores coloniais, não há negar a
contribuição inglesa àquele recanto montanhoso que hoje ainda subsiste, posto
que bastante transformado. Passar por Hong Kong
era uma oportunidade para valorizar o contributo inglês para espicaçar,
ativar e desenvolver a grande inventiva do povo chinês de Hong Kong. Aqueles
que visitavam a colônia, e tinham a fortuna de não se ater apenas às
externalidades, senão buscavam também a visão um pouco mais abrangente, em que
o figurante chinês, com a liberdade - quase sempre adjetivada - da colônia
britânica se torna o personagem real tanto na sua capacidade empresarial,
quanto na sua visão mais ampla, e que os gerarcas de Beijing, por mais que se
empenhem, não conseguirão ou embaçar ou restringir naquela colônia que se
tornaria a epítome da liberdade empresarial, a par da capacidade dessa gente
industriosa a que o trabalho ao
invés de diminuir, engrandece.
Hong Kong não é um palimpsesto - que,
como se sabe, é o manuscrito reaproveitado, porque tal designação reduziria o
sentido do trabalho - que não é labuta - eis que não embrutece o seu morador
chinês, mas o leva a sair de casebre para casas dignas de sua qualidade como
trabalhador de incrível produção e também inventiva.
Hong Kong se
transformou em paradigma democrático pela participação e coragem de seu povo,
abraçando a causa da democracia, que internalizou através do exemplo da
Inglaterra. Se é uma grande ironia do colonialismo inglês, a encontramos
através do secular contacto entre o invasor inglês e o povo chinês que habita
esse que se transformou no maior enclave da democracia, e de suas pétreas lições
para os opressores do Continente.
A gente de Hong
Kong - os que ficaram, que são em grande parte a população chinesa, mas não se
pode excluir que haja outros que também participem dessa viagem através das
contorções do dragão chinês. A democracia, essa grande dádiva da Hellas, na antiguidade helênica,
constitui para as ditaduras uma enfermidade de alta periculosidade, pela
simplicidade de sua doutrina e sobretudo pelo divino contágio que a liberdade
oferece ao ser humano, e que não haverá sapiência capaz de extirpá-la.
Como o povo
de Hong Kong vive a democracia, em suas múltiplas existências, será muito
difícil a ditadores, como o novo avatar deles, Xi Jinping, conseguir
apagar o que ela representa, em termos não só da dádiva sem preço da
democracia, mas também de uma existência em que o medo (em todas as suas patológicas reações) não o
acompanhe a cada momento.
(a continuar ?) -
(
Fonte:
Confesso que a diplomacia além de arte, é profissão e vivência)
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