Desde
a deposição do Rei Faruk, em meados do século passado, o Egito tem sido
governado por militares que, como o maior deles, Gamal Abdel
Nasser, se assinalaram na defesa dos interesses daquele país das pirâmides
e cuja história tornou-se mais conhecida quando foram decifrados os
hieroglifos.
Contrariando essa regra não escrita de o poder executivo ser assumido sempre por ditadores militares, Mohamed Morsi lá seria o primeiro chefe
de Estado eleito de forma democrática.
Morsi, membro importante da Irmandade Muçulmana (hoje proscrita) venceu na primeira eleição livre realizada em terra
egípcia. Foi época bastante agitada, social e politicamente, e, em consequência,
da revolta popular que derrubara o presidente Hosni Mubarak, diante da prevalente
escandalosa corrupção do regime.
Os
subitamente despertados ventos da revolta generalizada contra a prevalente
corrupção, marcaram movimento único no mundo dos xeques e dos ditadores
castrenses, a chamada primavera árabe,
com os seus fortes ventos - que, na América Central os guatemaltecos chamam de ventos huracanados, na sua linguagem
peculiar relativa aos quase furacões.
Foi a explosão de revolta de um povo há muito subjugado por ditaduras ora
cúpidas, ora abjetas, causou com a decorrente revolta social e popular a
referida primavera árabe na
Tunísia, que em um fenômeno talvez único nesse mundo, vasto mundo, seria ateado
com a morte de um paupérrimo feirante. No mundo árabe, a quase comum corrupção
dos governantes, os seus acintosos privilégios constituíram a palha seca que incendiaria
a raiva popular, de uma forma tal, que o
estranho fenômeno da sublevação social generalizada que, em coisa de meses
coloca aos respectivos homens fortes a braços com a irrupção de
revolta generalizada, numa expressão
social das massas enraivecidas com as diferenças na sorte, pondo em xeque a
punhado de líderes, muitos dos quais militares, que moram em palácios, numa
existência de fasto e privilégio, enquanto que para o zé-povinho se reserva a
dura luta diuturna de uma existência com salários em que a inflação se
alarpadava, o que levou a criar um movimento de surda revolta daqueles
desprezados da terra, que em se levantando foram acometidos pela inebriante realização do próprio poder.
São momentos raros na história dos povos, quando se desencadeiam inauditas correntes,
que surgem de re-pente, como as tempestades no deserto, e tendem na mór parte
dos casos a se assinalaram pela brevidade, ainda que, como qualquer tempestade,
ve-nham a atingir àqueles que estão no seu caminho com a previsível força de
uma cólera acumulada por décadas de vida miserável.
Semelha difícil deparar região que seja mais
propícia a essa brusca irrupção da cólera da gente sofrida, miúda e não assim
tão miúda, de que a situação prevalente nos governos imperantes no norte
africano, sob o longo domínio de regimes castrenses e autoritários, marcados em
geral por sanhuda e geral corrupção, ou por brutal, arrogante dissociação do
sentir das respectivas nacionalidades. Examinando esse norte árabe-africano com o
lazer que a distância no tempo
proporciona, se a metáfora seja admissível, a casta governante lá vivia sob a
doce ilusão que aquela pasmaceira da mi-séria popular circundante fosse o
espaço ideal para a enraizada corrupção deitar raízes ainda mais anosas e
fortes do que aquela das práticas das imperantes
corporações, que se nutriam em ambiente criador de odienta injustiça, como se
o acinte e o achincalhe da miséria fosse o fofo terreno o que melhor se coadunasse com a opulência dos
governantes.
Muita vez o fasto oriental pode parecer condizente e até aceitável, com
a miséria de um povo. Quem assim o crê,
é muitas vezes induzido pelos enganosos desvios das podres estruturas
que os cercam , e não têm presente que a stasis
pode ser uma frágil criatura, cuja
aparente prestança dissimula apenas a tempestade que varrerá em poucos meses do
poder um punhado de ditadores, a começar pelo ditador de turno da Tunísia.
Inúmeros
governantes, os chamados homens-forte de turno, seriam levados de roldão, a
começar pelo carismático Kaddafi, da Líbia, que na sua fuga seria abatido em
recanto deserto, ao tentar fugir da própria terra, por um bando de desconhecidos.
O antes poderoso Mubarak, por força das demonstrações na praça principal do
Cairo, sucumbe pela própria interna corrosão, arrastado por aquela poderosa vaga
de insatisfação popular com a sua corrupção, e a contradição da própria conduta
a-ética defronte da generalizada miséria da gente egípcia.
Como todas as tempestades, a primavera árabe -
que assustou a tantos regimes corruptos - também passaria. Entretanto, essa
explosão da ira popular nas regiões de o que em outras épocas fora chamada Arabia felix não se estendeu nem à Síria de Bashar al-Assad, nem a outras
plagas do Oriente próximo. São os
caprichos da História, de que os tolos por vezes riem à socapa, incrédulos que
são, talvez pela própria incapacidade de examinar a situação ambiente e de
aquilatar-lhe os imanentes perigos.
* *
Não, caro leitor, não me esqueci do presidente Mohamed Morsi. A democracia
, esse diabólico regime inventado pelos gregos,
há de ressurgir e também no Egito. Morsi terá cometido erros no curto
período de sua presidência, mas o regime democrático reserva outros remédios
para lidar com presidentes que, alegadamente, não atendam aos anseios de seus eleitores.
A violência praticada contra Morsi não se justifica de forma alguma. A
democracia reserva soluções especiais a governantes que não atendam às
esperanças e à vontade do próprio povo.
Não há nenhuma justificação para o cárcere político. E muito menos o
golpe militar. Dadas as características da "punição" aplicada a
Morsi, o que o poder castrense logrou no caso foi penosa demonstração de
despreparo para o exercício desse sistema de governo.
Tanto as acusações que
foram levantadas contra Morsi - de uma tal gravidade, de aparente
desproporcionalidade com as faltas acaso cometidas (que têm mais a ver com a
sua impopularidade) - como o castigo que lhe foi aplicado (vinte anos pela
morte de manifestantes durante protestos em 2012, e prisão perpétua por
espionagem para o Catar), que discrepam
dos seus modos simples e de sua família, casado e pai de cinco
filhos. Como diz o ditado francês, os perdedores têm sempre culpa.
Vamos ver por
quanto tempo vai durar essa "culpa". Entrementes, no Egito, o
ministério do Interior declarou estado de alerta, máxime em Sharqiya, província
natal de Morsi, onde provavelmente ele
será enterrado.
( Fonte: O
Estado de S. Paulo )
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