quarta-feira, 19 de junho de 2019

Cai um mártir da Liberdade


                         
      Desde a deposição do Rei Faruk, em meados do século passado, o Egito tem sido governado por militares que, como o maior deles, Gamal Abdel Nasser, se assinalaram na defesa dos interesses daquele país das pirâmides e cuja história tornou-se mais conhecida quando foram decifrados os hieroglifos.  
        Contrariando essa regra não escrita de o poder executivo  ser assumido sempre por ditadores militares, Mohamed Morsi lá seria o primeiro chefe de Estado eleito de forma democrática.
          Morsi, membro importante da Irmandade Muçulmana (hoje proscrita) venceu  na primeira eleição livre realizada em terra egípcia. Foi época bastante agitada, social e politicamente, e, em consequência, da revolta popular que derrubara o presidente Hosni Mubarak, diante da prevalente escandalosa corrupção do regime.
           Os subitamente despertados ventos da revolta generalizada contra a prevalente corrupção, marcaram movimento único no mundo dos xeques e dos ditadores castrenses, a chamada primavera árabe, com os seus fortes ventos - que, na América Central os guatemaltecos chamam de ventos huracanados, na sua linguagem peculiar relativa aos quase furacões. Foi a explosão de revolta de um povo há muito subjugado por ditaduras ora cúpidas, ora abjetas, causou com a decorrente revolta social e popular a referida  primavera árabe na Tunísia, que em um fenômeno talvez único nesse mundo, vasto mundo, seria ateado com a morte de um paupérrimo feirante. No mundo árabe, a quase comum corrupção dos governantes, os seus acintosos privilégios constituíram a palha seca que incendiaria a raiva popular,  de uma forma tal, que o estranho fenômeno da sublevação social generalizada que, em coisa de meses coloca aos  respectivos homens fortes a braços com a irrupção de  revolta generalizada, numa expressão social das massas enraivecidas com as diferenças na sorte, pondo em xeque a punhado de líderes, muitos dos quais militares, que moram em palácios, numa existência de fasto e privilégio, enquanto que para o zé-povinho se reserva a dura luta diuturna de uma existência com salários em que a inflação se alarpadava, o que levou a criar um movimento de surda revolta daqueles desprezados da terra, que em se levantando foram acometidos  pela inebriante realização do próprio poder. São momentos raros na história dos povos, quando se desencadeiam inauditas correntes, que surgem de re-pente, como as tempestades no deserto, e tendem na mór parte dos casos a se assinalaram pela brevidade, ainda que, como qualquer tempestade, ve-nham a atingir àqueles que estão no seu caminho com a previsível força de uma cólera acumulada por décadas de vida miserável.
          Semelha difícil deparar região que seja mais propícia a essa brusca irrupção da cólera da gente sofrida, miúda e não assim tão miúda, de que a situação prevalente nos governos imperantes no norte africano, sob o longo domínio de regimes castrenses e autoritários, marcados em geral por sanhuda e geral corrupção, ou por brutal, arrogante dissociação do sentir das respectivas nacionalidades.  Examinando esse norte árabe-africano com o lazer  que a distância no tempo proporciona, se a metáfora seja admissível, a casta governante lá vivia sob a doce ilusão que aquela pasmaceira da mi-séria popular circundante fosse o espaço ideal para a enraizada corrupção deitar raízes ainda mais anosas e fortes  do que aquela das práticas das imperantes corporações, que se nutriam em ambiente criador de odienta injustiça, como se o acinte e o achincalhe da miséria fosse o fofo terreno o  que melhor se coadunasse com a opulência dos governantes.
           Muita vez o fasto oriental pode parecer condizente e até aceitável, com a miséria de um povo. Quem assim o crê,  é muitas vezes induzido pelos enganosos desvios das podres estruturas que os cercam , e não têm presente que a stasis pode ser uma frágil criatura,  cuja aparente prestança dissimula apenas a tempestade que varrerá em poucos meses do poder um punhado de ditadores, a começar pelo ditador de turno da Tunísia.  
            Inúmeros governantes, os chamados homens-forte de turno, seriam levados de roldão, a começar pelo carismático Kaddafi, da Líbia, que na sua fuga seria abatido em recanto deserto, ao tentar fugir da própria terra, por um bando de desconhecidos. O antes poderoso Mubarak, por força das demonstrações na praça principal do Cairo, sucumbe pela própria interna corrosão, arrastado por aquela poderosa vaga de insatisfação popular com a sua corrupção, e a contradição da própria conduta a-ética defronte da generalizada miséria da gente egípcia.
              Como todas as tempestades, a primavera árabe - que assustou a tantos regimes corruptos - também passaria. Entretanto, essa explosão da ira popular nas regiões de o que em outras épocas fora chamada Arabia felix não se estendeu nem à Síria de Bashar al-Assad, nem a outras plagas do Oriente próximo.  São os caprichos da História, de que os tolos por vezes riem à socapa, incrédulos que são, talvez pela própria incapacidade de examinar a situação ambiente e de aquilatar-lhe os imanentes perigos.
                                              *           *       
                  Não, caro leitor, não me esqueci do presidente Mohamed Morsi. A democracia , esse diabólico regime inventado pelos gregos,  há de ressurgir e também no Egito. Morsi terá cometido erros no curto período de sua presidência, mas o regime democrático reserva outros remédios para lidar com presidentes que, alegadamente,  não atendam aos anseios de seus eleitores.
                     A violência praticada contra Morsi não se justifica de forma alguma. A democracia reserva soluções especiais a governantes que não atendam às esperanças e à vontade do próprio povo.
                      Não há nenhuma justificação para o cárcere político. E muito menos o golpe militar. Dadas as características da "punição" aplicada a Morsi, o que o poder castrense logrou no caso foi penosa demonstração de despreparo para o exercício desse sistema de governo.
                         Tanto as acusações que foram levantadas contra Morsi - de uma tal gravidade, de aparente desproporcionalidade com as faltas acaso cometidas (que têm mais a ver com a sua impopularidade) - como o castigo que lhe foi aplicado (vinte anos pela morte de manifestantes durante protestos em 2012, e prisão perpétua por espionagem para o Catar), que discrepam  dos seus modos simples e de sua família, casado e pai de cinco filhos.  Como diz o ditado francês, os perdedores têm sempre culpa.
                             Vamos ver por quanto tempo vai durar essa "culpa". Entrementes, no Egito, o ministério do Interior declarou estado de alerta, máxime em Sharqiya, província natal de Morsi, onde provavelmente  ele será enterrado.   

( Fonte: O Estado de S. Paulo )

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