quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Lembranças do Padrinho Chico (XI)

                             

           Meus tios me deram uma bicicleta Hércules, de  fabricação inglesa, com que passeava pelas ruas tranquilas do Jardim Europa, durante as nossas estadas em São Paulo.
            Não há muitos registros das minhas atividades ciclistas. Só uma solitária foto, saindo de mansão que não era nossa... Não por ser longe, mas pela pista irregular e escorregadia, a pedido de minha mãe, não pedalava até o clube Pinheiros - meu padrinho era sócio, e graças a ele tinha ingresso livre nesse grêmio.
            Então ficava em rua sem asfalto, se saísse pelo Jardim Europa,  através do balão com o ponto final dos bondes. Havia um bar bem por perto, onde às vezes tomava, nas tardes mais frias, xícara de chocolate quente. Às costas, a avenida das Nações, via que me era defesa pela cautela materna. Poucas vezes atravessava aqueles espaços trepidantes, e tampouco nas calçadas fronteiras, do lado de Pinheiros. A razão era o meio-fio, alto em demasia para os aros da bicicleta. Como, mesmo naqueles tempos primevos, ali já houvesse certo trânsito, minha mãe se preocupava com os eventuais perigos de me aventurar  por tais espaços.
             Entretanto, comparar o caos do trânsito paulistano de hoje com a aprazível, quase bucólica atmosfera que se abria aos que demandavam o velho clube alemão - renomeado às pressas, às vésperas do conflito com as potências do Eixo - com a realidade hodierna, em que o automóvel e, sobretudo, a especulação imobiliária varreu do mapa a prazerosa ambiência dos Jardins - mormente o Europa, seria tarefa pouco agradavel...
              Já referi da  ida - tolo que fui! - ao Jardim Europa para rever um dos bairros da minha juventude. Caiu-me, ao invés, a melancolia de suas ruas desertas, nos espaços encolhidos pelo império da segurança burguesa, com seus telhados muros divisórios,  suas altas cercas de arame farpado, sua burguesa negação de espaços livres para a garotada, enfim mal-disfarçado ambiente do medo dos endinheirados, e seus macambúzios bastiões.
               Então pensei naqueles anos que não voltam mais, nos meus passeios a dois com a irmã de Beto e Sérgio.  Íamos em nossas bicicletas cruzando os espaços de jardins e calçadas bem-cuidadas. As ruas, até as persianas, no traçado quase sonolento do Jardim Europa, sequer nos olhavam, como aquelas batidas pela soleira, nas cidadezinhas de Drummond. Nem as janelas espiavam. E eu, desdenhando as mostras e os doces sorrisos de Carmen, minha ciclista companheira, que me dava toda a impressão de ter um certo fraco por aquele bissexto acompanhante, que todos os anos aparecia, até nunca mais voltar.
                Ali não caíam neves, e só as aves cruzavam o nosso silêncio a dois, tão prenhe de frases não ditas, tão sossegado e próximo, e, no entanto, sobre ele pairavam imagens de futuro que não seria nosso, por tudo e por nada, mas em especial pelo simples fato de que aquela experiência seria única, igual à atmosfera serena dos anos que passaram e não voltam mais.
                 Por isso, muitos anos mais tarde, só posso repetir o homérico tolo que fui. Naquele silêncio, que as árvores e os jardins particulares observavam, de que me serviria uma patética caminhada por espaços desfigurados pelas rugas não da senectude, mas do cruel império do tempo, que me fazia entender profundamente aquele citado personagem de René Clair que, no carrossel das estações, clamava pelos bons, velhos anos que o passado enterrara  e que não voltam  mais nunca !
                 A vos risques et périls[1], teria sido o meu erro de pensar possível desenterrar o passado em caminhada por bairro que já  esquecera, deformado que está pelo modo com que o tratam e pelo bárbaro progresso, - detestado pelo fotógrafo Atget - que, na desordem, espalha rugas na gente, fissuras nas paredes, e temor nas casas fechadas diante do ignoto, tão anunciado quanto sabido no que se propõe.

                 Tinha pensado possível reeditar a brincadeira de bancar o explorador, não mais do presente, mas do tempo pretérito, justamente aquele que não volta mais. Tudo isso a poucos metros das casas de referência... Como imaginá-lo se não mais existem a vegetação do silvestre citadino, os pinheiros e as demais árvores, daqueles espaços irregulares ainda livres da especulação imobiliária, e, anos mais tarde, da invasão da segurança, com os seus hediondos muros protetores,  que, na verdade, sinalizam as regressões impossíveis.
                 Como eram verdes os nossos terrenos baldios, como  nos deixavam vogar à deriva, sem outro cuidado que o tinir da sineta, o banho ritual e a ceia que mãos calosas nos preparavam com a bondade de outros tempos...

(Fontes: Homero, Eugène Atget, Richard Llewellyn, René Clair e Carlos Drummond de Andrade )



[1] A vosso risco e perigo

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