domingo, 18 de setembro de 2016

Lembranças de Padrinho Chico (IX)

                            

        A vinda para o Rio de Janeiro foi feita por um navio da Costeira. Recordo-me que também veio a família de meu tio Toninho. Ao contrário de minha mãe e eu, os Mendes vinham  de férias. Esse período foi decerto escolhido adrede por mamãe. Assim, eu não perderia dias no colégio, enquanto se acertava o desafio da transferência escolar para a capital da República.
        Vivíamos então no governo do general Eurico Dutra. Salvo o enjôo de minha mãe - naquele tempo, não creio que houvesse o remédio Dramamine -, tudo transcorreu sem surpresas, e tampouco sem temporais.
        Chegamos ainda em julho ao Rio, e a princípio ficamos no hotel Praia Leme, que foi aquele também escolhido por Toninho e família. Assim, no período das férias de meio de ano, minha mãe terá acertado a transferência para o Colégio Anglo-Americano, sediado em amplo terreno na praia de Botafogo. Não muito mais tarde seria construído á sua direita o prédio onde ficaria o Department Store da Sears, que deve ter sido um dos primeiros grandes magazines americanos a vir para a então capital.
        Estava eu no Anchieta, um dos melhores estabelecimentos de ensino secundário de Porto Alegre. A intenção inicial era matricular-me no Santo Inácio, mas tal se mostrou fora do orçamento de minha mãe viúva. Teve ela, por conseguinte, de escolher a segunda alternativa. Fui para colégio de classe média, que tinha decerto bons professores, e não cobrava a mensalidade dos jesuítas, que na rua São Clemente também em Botafogo era considerado entre os melhores, senão o melhor, colégio secundário do Rio de Janeiro.
       Achava-me então na encruzilhada do Admissão, que naquele tempo - e como mudam com o subdesenvolvimento os esquemas escolares no Brasil! - era a porta de entrada do ginásio.
       Se em Porto Alegre estava entre os melhores da classe, minha mãe e eu logo nos daríamos conta da grande diferença no currículo do Rio Grande para a capital. E o meu primeiro teste logo mostraria o quão atrasado me achava em relação ao currículo praticado no Anglo-Americano.
         Como não tínhamos maiores disponibilidades financeiras - peço desculpas por aludir amiúde a essa condição de relativa penúria, mas tal desafio equivalia a  elefante branco postado na sala de visitas: não havia maneira de evitá-lo... - o jeito foi que mamãe me ajudasse como "instrutora" de manhã, para capacitar-me a de tarde enfrentar o admissão no Anglo-Americano.
          A princípio, foi bastante difícil. Minhas notas nos testes do colégio carioca, começaram muito baixas.  Era um verdadeiro escândalo a abissal diferença entre o Rio Grande e o Rio de Janeiro, em matéria de currículo escolar. De certa forma, eu pagava o pato, tendo de aguentar as broncas de minha mãe Maria. Tinha a noção - apesar de ainda criança - que alguma coisa devia estar errada. Como é que estava entre os primeiros da classe no Anchieta, disputando amiúde os 'prêmios' que aquele colégio de jesuítas oferecia aos seus alunos porto-alegrenses, para de repente, ter de aguentar as repreensões maternas, pelas minhas baixíssimas notas no admissão do Rio de Janeiro?
          Conforme ao meu temperamento que procurava ser cordato nas 'aulas' maternas, confusamente consciente talvez que ela também se sentisse pressionada pela diferença nos currículos, em geral eu aguentava em silêncio as repreensões maternas, conquanto a injustiça da situação principiasse a aparecer-me nos seus óbvios contornos.
          E minha mãe, por mais nervosa que estivesse (não tínhamos obviamente dinheiro para pagar aulas particulares), tinha que fazer das tripas coração.
          Aos poucos, ela foi ficando mais calma, e eu de minha parte tratei de enfrentar o desafio.  No final, eu conseguiria passar no admissão do Anglo-Americano, e adentraria o primeiro ano do ginasial. Por conta da brutal disparidade nos currículos, as minhas notas não estariam entre as primeiras, mas tampouco passei raspando.  Estava afinal no primeiro ano do ginásio, e para esse feito não ignorava que o devia em parte a minha professora particular, a própria mãe, e por outro lado, a mim próprio, que encarei o desafio e ao vencê-lo, adentrei o primeiro ano ginasial já entre os primeiros, livre do exemplo dos retardatários que, em geral, ficam nas últimas carteiras da classe.
           Vencido o Admissão, minha mãe e eu também nos livramos da condição de hóspedes. Com  sacrifício, ela comprou três presentões (entre eles, máquina de costura nova, cortes de tecidos finos) para a sua irmã Marina, que a hospedara no apartamento da Antonio Carlos em que vivia com o marido Américo Laporta.
           Minha mãe sempre me deu esse exemplo. O favor dos parentes, mesmo próximos, deve ser aceito, mas retribuído a seu tempo, e de forma digna.
           Com o habite-se do prédio na Av. N.S. de Copacabana, entre a Júlio de Castilhos e a Francisco Sá, e portanto no posto 6, abria-se para nós o apartamento de frente, no nono andar,  do edifício Satélite.
           Quando adentramos o imóvel, ainda havia operários no prédio... Minha tia Lucy ajudou mamãe a dar um jeito no seu apartamento, que era de frente e no nono andar. Ainda faltava uma boa parte para ser paga, conforme o contrato de compra e venda.
           Minha mãe, que antes tinha carro na porta, e casa de eira e beira, não perdia tempo em choramingos. Graças aos bens do meu avô que eu herdara, ela podia sustentar-se, como dona de casa (nunca teve empregada, e por isso, mais tarde, pagaria caro). Também minha avó materna, Cidalizia Vaz Dias Mendes, passara a morar conosco, e por isso ajudava financeiramene. Mas, por vezes, a coisa ficava preta, e mamãe teve de admitir um casal como hóspede no apartamento.
            Mas com a graça de Deus, e o trabalho materno, isso foi necessário apenas por uns dois ou três meses. Doía ver minha mãe levar de manhã, na bandeja, o café matinal para a dupla de hóspedes.
           Em breve, a crise foi vencida pelo trabalho aturado. E, por fim, veria minha mãe vencer o desafio e não mais precisar desse gênero de honesto recurso.
            E dizer-se que meu avô conseguira pensão extraordinária para a sua nora Maria (e o neto Mauro, que os poderes da República logo colocaram na dita pensão, de forma a que a viúva do engenheiro-civil José Raphael de Azeredo, morto a serviço em desastre de aviação em 20 de junho de 1944, só dispusesse de tal pensão plena até a maioridade minha aos dezoito anos!). Sem dizer que a invejável pensão em 1944, de um conto de réis, não tardaria a ser comida pelos ratos da inflação...

       

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