segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Lembranças de Padrinho Chico (VI)


                             

      De volta à casa do padrinho e de Déborah, a irmã mais velha de mamãe, e minha madrinha, tratou-se logo de matricular-me na escolinha infantil, que existia a umas quatro quadras da casa dos Lanzetta. Como mal completara sete anos, minha mãe me levaria a essa escolinha toda manhã. Ela ficava do outro lado da avenida Europa que, se não me engano, corta o Jardim Europa.
      Vindo do Roque González, em Porto Alegre, não tive dificuldade em aclimatar-me a essa segunda escola. Como se verá, tive de passar por muitas peripécias. De lá me recordo de don'Ana, a nossa professora, que todos respeitávamos, crianças que éramos, e que costumam sentir o pulso das boas, mas enérgicas, mestras.
        Dessa escolinha, só me restam lembranças fugazes, pois ali o tempo correu célere, como é hábito nos lugares regrados e tranquilos.
         Lá comecei a aprender a ler e escrever.  
     Voltando à casa por volta do meio-dia, esperávamos a chegada do tio para o almoço. Minha madrinha tinha duas empregadas, e a mesa era bem fornida. Recordo-me das sobremesas, que acirravam a nossa gula, do padrinho e minha.
       Depois da refeição, meu tio costumava fumar charuto, e nós lá ficávamos, na nossa então ignara condição de fumantes secundários. Chico trazia os jornais para casa (se bem me lembro, a Gazeta, Diário de S. Paulo e o Estado de S. Paulo).  Devia eu fazer atenção se os lesse antes, para não misturar as páginas e mexer com a paciência do padrinho.
       Aliás, as crianças logo sentem a mudança das regras. Se antes, no Jaguarão e nas outras residências havidas com meu pai, tanto ele, quanto mamãe, não se importavam que porventura mexesse nos diários.
       
        No entanto, não ser filho do dono da casa me impunha regras bem claras que seria melhor não ignorar. Além disso, brincadeirinhas na sala, as devia evitar, pois naquele casal que não tivera filhos, a presença de criança era admitida, sob o tácito pressuposto de que, quando possível, evitasse... ser criança. E como eu, ainda pequenote, logro tratei de não importunar o padrinho enquanto lia  seus jornais.
          Minha mãe estava de luto fechado.  Era o costume dos tempos, mas, em verdade, nem carecia. O seu belo rosto lixiviado pelo prato, mamãe poderia envergar roupa vermelha, que a sua infinita tristeza continuaria à mostra.
        De tarde, por vezes, no jardim de inverno, a irmã Déborah  ligava o rádio. Naquele tempo sem tevê, as estações colocavam amiúde músicas clássicas. Se viesse alguma mais triste, minha mãe não se continha e chorava copiosamente.
          Naquela casa fraternal, éramos bem tratados, mas sempre seríamos de certo modo estranhos. Por isso, qualquer composição em que os acordes tivessem aquela impregnada tristeza que só as pessoas infelizes podem sentir fundamente quando é tocada, desataria na minha pobre mãe um pranto sentido, por vezes tão forte que a irmã tinha de desligar o rádio. Como poderei esquecer, passados tantos anos, a visão do belo rosto de minha mãe Maria, tão cedo despojada do marido! E como não deixava de ter presente, naqueles momentos transidos de funda tristeza, quão espontâneos eram!
             Pois a felicidade daquele casal desfeito ninguém precisava me dizer. Desde o Jaguarão, já um pouco mais crescido, eu a acompanhava sem saber quão breve ela seria. Nunca presenciara briga ou altercação de meus pais. A felicidade conjugal aí prevalecia, e como era uma segunda natureza sequer carecia de ser mencionada!

            Sorte madrasta perseguira minha mãe. Tão cruel que para ela, afundada no luto pesado daqueles anos, parecia difícil de entender tão brutal perversidade. Nessas condições, que dizer de que, pelo rádio, a fantasia das ondas herzianas lhe avivasse a funda melancolia que o triste, impiedoso mesmo, destino de casal tão jovem e bem-parecido só lhe fazia afundar no pranto sentido que ela comungava com aquelas músicas que para a minha pobre mãe eram convite ao pranto e mesmo aos soluços.
           Apesar de bem acolhidos na residência dos tios, compreendo porque minha mãe aguardasse ansiosa pelas cartas de meu avô. Elas descreviam das dificuldades de arranjar-nos apartamento no Jaguarão.
            Sem embargo, a persistência de meu avô Romualdo, e o quanto ele sofrera com a  perda de seu filho predileto - e o era não por ser o mais velho, mas o que mais se empenhava no trabalho e na atenção aos pedidos do pai - de algum modo assegurava à minha mãe, que as coisas se iriam resolver com presteza.
            E dentro da burocracia brasileira, que nos é, através dos tempos, uma segunda natureza, meu avô Romualdo afinal lograria o que por tantos meses perseguira.
  
         Então, pelo correio, nos chegou a leda nova de que afinal tínhamos um paradeiro, em que minha mãe e eu arrumaríamos as nossas coisas - não muitas! é verdade - e nos arrancharíamos no apto. 3-B do edifício Jaguarão que meu pai projetara, a pedido de seu genitor, no ano de 1937, enquanto minha futura mãe me esperava.

    
       Como éramos gratos ao meu avô, por todo o empenho em obter-nos prontamente o nosso pouso!     


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