Desde
que me entendo como gente há pessoas que ofendem a outrem, simplesmente por
cumprirem o seu dever.
Pois Cícero Hilário Roza Neto nunca careceu de dizer que é pós-graduado
para impor respeito. Para ele, o diploma
só o ajudou a exercer melhor o seu trabalho.
Com efeito, o guarda-civil e graduado em segurança pública, e também com
graduação na área de direito educacional. Pois segundo Cícero, foi graças à
educação que recebeu dentro e fora de casa que ele se manteve firme diante do
pior insultou que lhe foi dirigido.
"Fui chamado de analfabeto. E ouvi isso de alguém muito
instruido.", disse à Folha.
Na tarde do último sábado, dia dezoito, ele e o colega Roberto
Guilhermino, autuaram o desembargador Eduardo Almeida Rocha Prado de Siqueira,
com 63 anos, que caminhava sem máscara na orla de Santos, no litoral sul
paulista.
O ítem de proteção é
obrigatório na cidade, por força de decreto municipal. uma medida para
conter o avanço do novo coronavírus .
Quem não usa máscara e é flagrado pela Guarda Civil Municipal recebe multa de cem reais.
"Eu já havia
abordado e multado outras cinco pessoas antes dele. Elas ficaram chateadas, mas em nenhum momento
me desrespeitaram.", afirma o guarda-civil.
Siqueira, porém,
não só se recusou a usar o equipamento, como se apresentou como desembargador
do Tribunal de Justiça de São Paulo, função que exerce desde 2008, e numa
tentativa de intimidação ligou para o Sérgio Del Bel Junior, secretário de
Segurança Pública de Santos.
"Del Bel,
eu estou aqui com um analfabeto, um PM seu aqui, um rapaz. Eu estou andando sem
máscara. Só estou eu aqui na faixa de praia. Ele está aqui fazendo uma multa
(contra mim)", disse o desembargador ao telefone. Na conversa, o desembargador insistiu que o
decreto municipal não tem força de lei para obrigar os moradores a usarem
máscaras. "Eu expliquei de novo, mas eles (guarda civis) não conseguem
entender",diz. Ao terminar a ligação Siqueira pegou a multa, rasgou o
papel, jogou-o no chão e saíu
caminhando. A abordagem, que foi filmada por Guilhermino, viralizou nas redes
sociais. Ele conta que decidiu registrar a abordagem porque já conhecia a
fama de Siqueira na cidade.
"Eu presenciei ele
sendo abordado antes de o decreto passar
a valer. Naquela ocasião era mais uma forma de conscientização, mas ele também
não quis usar a máscara", conta o policial.
Em outro vídeo que
circula pela internet, Siqueira aparece sem máscara, desrespeitando outro grupo
de guardas-civis. As imagens mostram um dos agentes tentando convencê-lo a usar o
ítem de proteção, dizendo que o magistrado é uma pessoa esclarecida. Siqueira
concorda e começa a falar em francês em
tom jocoso.
Naquele sábado,
Cícero viu Siqueira de longe e pediu para o
desembargador colocar a máscara, mas ele fez um sinal com as mãos de que
não usaria. Foi aí que os guardas-civis decidiram segui-lo. "Eu nunca
pensei que aquela abordagem fosse terminar daquele jeito", ele conta.
Quando chegou
em casa depois do plantão, o guarda-civil se deparou com a família
preocupada. Àquela altura, todos já
haviam assistido ao vídeo da abordagem que se espalhou pelas redes sociais.
"A
preocupação era com os meus filhos, mas fiquei tranquilo quando a minha filha,
que tem 15 anos, entendeu que eu fui tratado de forma injusta e não retruquei
com a mesma moeda."
Mesmo
assim, Cícero só consegue dormir com a ajuda de calmantes, desde então.
"Não sai da minha mente aquilo. Ele me chamou de analfabeto, perguntou se
eu sabia ler. Quis me intimidar de todas as formas."
O
guarda-civil não vê a atitude de
Siqueira com um ato racista. "Eu sou negro, mas a discriminação dele foi
mais por causa do meu cargo. Eu poderia ser um guarda branco, japonês, que ele
ainda assim faria aquilo,"
diz. Nesta segunda, dia 20, a
dupla foi homenageada pela prefeitura. "Essa nossa atitude deveria ser a
regra e não a exceção.Eu espero que esse fato faça a população ver os guardas
civis com outros olhos", disse Cícero,entre lágrimas.
O
guarda-civil defende que o desembargador seja punido no rigor da lei - o
Tribunal de Justiça e a Corregedoria da CNJ já investigam o caso. Cícero e
Guilhermino vão registrar na Polícia Civil um boletim de ocorrência por
desacato de autoridade. "Será mais
uma forma de ver cumprir a lei", afirma Guilhermino.
Outra Visão do Desembargador Eduardo Siqueira. (parte II)
A desembargadora Maria Lúcia
Pizzotti, do Tribunal de Justiça de SP, diz que o desembargador Eduardo
Siqueira é uma "figura desprezível."
A magistrada já processou o colega por injúria e difamação. Quando
estava no início da carreira, Siqueira depôs contra ela, tentando impedir que
se tornasse juíza com direito à vitaliciedade.
"Ele tinha uma postura bastante desagradável no trato pessoal, e eu
fui obrigada a ser firme desde o começo, Eu tive que processá-lo por difamação
e injúria", afirma.
Na época, o seu advogado foi o crimina-lista Alberto Toron. O magistrado que analisou o caso considerou
que testemunha não pratica ato de
injúria ou difamação ao depor. Ela recorreu ao STJ, mas houve decadência da
ação. A magistrada diz que muitas coisas já foram toleradas sobre Siqueira. Por
isso, ela "aplaude" a instauração de um procedimento contra o
desembargador.
"Ele, em tese,
cometeu o crime de desacato, ao destratar o policial e não respeitar a
autoridade dele, que cumpria uma regra municipal, de determinar o uso de
máscara. Ali ele era um cidadão comum. A autoridade, era o policial",
afirma ela.
"Eu entendo também que, em tese, ele cometeu os crimes de abuso de
autoridade, tráfico de influência, ao ligar para o Secretário de Segurança de
Santos, e também injúria, porque xingou o policial de analfabeto. E também
descumpriu regras ao se negar a usar máscaras e rasgar um papel e jogá-lo no
chão, sujando a praia."
Ela acredita que seria o caso, se ele for processado e condenado criminalmente, de
perder o cargo. "Depois de tantos ilícitos, é o mínimo que se espera.
Afinal, a sociedade quer que uma pessoa que comete tantas ilegalidades siga
julgando os cidadãos?"
A coluna enviou uma mensagem à assessoria do
Tribunal de Justiça de São Paulo pedindo para ouvir Eduardo Siqueira sobre as acusações feitas
pela Desembargadora, mas não obteve resposta.
( Fonte: Folha de S. Paulo, pág. B8 "Ofensa de Desembargador não sai
da mente, diz Guarda de Santos )
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