A situação da segurança em Manágua se
deteriora bastante. Com cem dias de protestos e violência política, o cotidiano
do terror toma conta das ruas.
Há dois toques de recolher: quando principia
a cair a noite, passa a existir um
informal. O fato de estar na rua, além de representar perigo para o transeunte,
cria situação nova, em que todos os que
circulam em logradouros públicos se tornam suspeitos.
É a hora da geral suspeição. Basta
estar na rua, não importa causa ou motivo, para que o transeunte seja
questionado e de forma intrusiva, como se a sua própria situação já o incriminasse.
Uma atmosfera kafkiana prevalece por toda a parte. Para aumentar o medo, em termos de que o poder paralelo da suposta segurança passe a dominá-lo, com as
revistas abusivas, além da ritual retirada dos celulares, em verdade arrancados
das pessoas - seria como espécie de anúncio de o que surge como a manifestação
de outra ordem, que nada tem a ver com o cotidiano dos centros citadinos. Será
a orgia do terceiro-mundismo?
Compõem a atmosfera de um poder mais
alto, em que os cidadãos viram, na prática, objetos de suspeição e, por
conseguinte, passam à virtual dependência do poder policiesco. Aqui, igualmente
comparecem as cores do
subdesenvolvimento da ínsita violência. Assim, caravanas de dez picapes
sem placa cruzam em alta velocidade as ruas de Manágua. Parecem ter pressa na
sua peculiar transgressão em difundir o terror vazio e, ao mesmo tempo,
ameaçador: levam policiais (com rostos cobertos, mas uniformizados ) e
paramilitares, com fuzis AK-47,
metralhadoras e granadas.
Que as ruas fiquem ermas, não há
de surpreender.
A estúpida morte da brasileira
Raynéia Gabrielle Lima faz parte desse sádico ritual do horror nessa
lúrida atmosfera. Em tal ambiente, em
que transeuntes e carros não conhecidos nos arredores são alvo - e aqui não se
trata de gentil metáfora - da paranóia profissional dos seguranças de plantão
pode, se não explicar, pelo menos jogar
alguma luz num lugar em que toda a gente de fora torna-se suspeita, e, por
conseguinte, alvo de reações em que a realidade vira a apropriada imagem distorcida para espicaçar os piores
instintos nos indivíduos a que a "segurança" é confiada. Pois será essa
gente preparada para tudo, tangida por tosco
aprendizado, que mais parece a oportunidade - por estranha ironia - de
servir-se do poder que lhe vem da sua situação e da arma nas mãos, para apagar
com a esponja daquela pistola, as pequenas humilhações a que se sentira imposto
por um cotidiano brutal e miserável.
Sobre quem recai a
responsabilidade dos crimes cometidos nesse rodopio sem sentido, enquanto as
caminhonetes, com a sua carga de celerados, rodam as ruas ao longo das frestas
que, dessas janelas, espiam temerosas aquela súbita, antecipada invasão? No
frenesi da pressa que não tem sentido, senão no medo que inflige aos pedestres
de ter seu cotidiano nas mãos, esse tenebroso cortejo se
inebria no rudimentarismo selvagem que a
velha pistola traz, que um voyeur
intelectual definiria como poderes taumatúrgicos.
Na Nicarágua, um velho ditador
resiste à ideia de abandonar o poder. Para infelicidade de muitos, o esquemão sandinista está ainda implantado,
e tem o apoio de grupo decerto movido por ideias ultrapassadas, e cuja chefia
se recusa a reconhecer que a grande maioria da sociedade nicaraguense o repudia. Por isso, contra os estudantes, a Igreja e
outros segmentos que já lhe condenam a violência enquanto sistema, o
ditador Daniel Ortega e sua
vice-presidente Rosario Murillo se encarniçam.
A pobre Raynéia, que já estava
próxima de completar os estudos médicos, cai vítima de tiroteio que a ditadura
sequer admite possa vir de seu exército de capangas, seguranças e soldados.
Muita gente está morrendo na Nicarágua.
Uma violência fora do tempo pensa poder ir em frente, movida por ideologia que
em outros cantos já foi consignada ao silêncio de tantos cenotáfios que abarrotam
os seus brancos, alvos campos, que só prometem da morte o silêncio.
(
Fontes: Carlos Drummond de Andrade, despachos da Nicarágua).
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