Faz tempo que a velha foto se
entremostra, colocada como está ao lado do teclado do computador.
Faz tempo também que a coloquei ali.
Na verdade, ela está inserida em recorte do New
York Times, quando esse jornal era distribuído no Rio, em edição rodada no
Brasil. Hoje ele nos chega digitalmente como tantas outras publicações, o que
se lhe garante recepção tempestiva, não nos traz o antigo prazer de folhear o
periódico.
O famoso 'progresso' tem alguns senões.
O que interessa, no caso, entretanto, é que a dita fotografia me veio junto com
página dedicada à restauração de hotel antes famoso - o Ritz - em Paris, que fechara para os indispensáveis trabalhos de
trazê-lo à antiga glória. Assim sob o título "Restaurando uma jóia na
Coroa francesa", o Times publica
fotografia de festa no meio do século passado.
Há muitas mesas. As mulheres, de
vestido negro, decotadas algumas, e os homens de smoking e gravata preta. Todos - ou quase todos - conversam, e se
imagina as luzes do salão sob as vistas largas de anônima máquina fotográfica
que para sempre dominará este jantar de ano-novo, as paredes com os drapeados
veludos e os archotes de cristal, lá no
alto pendurados. Há colunas que as luzes próximas do flash desnudam com seus atavios de ano novo, e que irão aos poucos enegrecendo,
à medida que a imagem da grande sala, em que os garçons a caráter parecem sair
das sombras pelo branco nas gravatas e colarinhos, se irá tornando cada vez
mais indevassável. A grande sala de festas do Ritz como que protegida pela noite profunda, que
entre os convidados se espalha, alguns mais adentro, na luz subitânea e
caprichosa de meio-século atrás, com essa gente engalanada na fruição do momento, e os convivas mais
adentro, ignaros da tóxica atmosfera de acesos cigarros, cachimbos e charutos
no festival do fumo. Contemplando a visão do além seleto, ainda que
premonitório, pois a névoa não é londrina - que seria coisa de Dickens,
Stevenson e do século dezenove - mas com pinceladas da Lutécia do último meio-século.
Ali há lindas mulheres, que sorriem para a imaginária câmera. Mas nem todas. Por
motivos que a razão desconhece, o olhar se encaminha para a dama que com
olhos bem abertos nos contempla, como a perguntar-se o que faço a perscrutar do
longínquo futuro aquele banquete de um ano novo já perdido nas brumas do
passado. Muito jovem ainda, com os cotovelos vincados na alva toalha de bordas
rendadas, ela parece perguntar que estou fazendo tal qual um peeping-tom do futuro de quem lá esteja
a perscrutá-la com os olhos plácidos de admirador de natureza morta. Bem viva
ela me parece, e como que sai da foto a atenção para sempre fixada no que se
lhe depara, e para nós - e para mim - está defeso para sempre. A comemoração do
ano novo mal findou, e ela ainda guarda, sobre os cabelos negros, como que um
boné frígio, que lhe vinca a testa, e marca os olhos da jovem que ou deparam um
pobre fotógrafo, ou se pergunta de o que o porvir reserva a ela. Esses
instantâneos que a noite do passado, subreptícia como sempre, nos lança, serão
imagens pressagas de o que nos espera? Paris, Lutétia quando jovem, se passados
alguns anos - pouco mais de uma década - me proporcionou imagens - que guardo
em espaço tão perecível quanto os personagens dessa festa.
Pergunto-me então se essa jovem
dama ainda está viva. De minha parte, a que, na mesa ao lado, mostra os ombros
nus e negra gargantilha no pescoço, e
para sempre sorri ao acompanhante masculino de costas para o fotógrafo,
enquanto ignora tudo o mais à sua volta, eu a deixo para sempre, enquanto hirta
figura de festim para o qual não fui convidado. Mas, como pela juventude terá
sido possível que eu cruzasse com a outra inquisitiva figura, seja em
embaixada, seja em restaurante da moda, aqui deixo a pergunta, à maneira de
tantos que jogam moedas em marmóreo monumento.
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