De Vladimir V. Putin, se pode dizer muitas coisas, mas não que lhe
falte tenacidade (ou obstinação - que
é a mesma característica, mas sem os atavios dos cortesãos à volta).
Faz tempo
a New York Review publicou artigo em
que se ocupa da doutrina supostamente abraçada por gospodin Prezidént. Trata-se de uma composição a chamada doutrina
eurasiana, que com elementos de pensadores da Direita (nazismo) e da Esquerda,
nos apresenta o que o entorno de Putin quer fazer passar por maneira de ver
própria das motivações de sua presidência.
Não se
pode negar que Putin é autêntico patriota - a princípio, funcionário
categorizado na sede de Dresden (então República Democrática Alemã) do KGB. Sofreu bastante na fase terminal do
governo de Mikhail Gorbatchev, quando
o princípio das nacionalidades, desatado pelas forças da Peristroika e da Glasnost, desmantelava
na prática o Império Soviético.
E foi com
mágoa no coração que ele queimou parte dos arquivos da Agência de Dresden,
diante da audácia crescente dos alemães do leste, antes submissos diante dos
representantes do serviço secreto soviético.
A
trajetória de Putin se assinala por grandes mergulhos em que pensa encontrar
forças - e em geral as depara - para superar os desafios à sua suposta
predestinação para restaurar, senão na integridade, pelo menos em boa parte, o
antigo status da União Soviética.
Na sua
doutrina eurasiana - com os aportes supra-referidos - se deve vislumbrar um
instrumento flexível, mas empregado de forma resoluta para levar à antiga
grandeza da Rússia dos Tzares e da própria URSS no cenário mundial.
Desde que
na virada do século, assumiu o poder, que foi cedido mais pelo entorno
oligárquico do que pelo próprio Boris
Ieltsin, o que tem sido visto pela intelligentsia
russa como um desastre.
Como de
resto se verifica nas obras significativas de duas mulheres - i.e., Masha Gessen, pela sua passagem (anos de
aprendizado) como vice-prefeito em São Petersburgo, em que com o homem de
frente Dmitri Medvedev ele forma o seu círculo de apoio, que inclui o
ocasional recurso à mala vita; e mais
adiante, em retrato sem retoques do livro "A cleptocracia de Putin"
uma análise corajosa e precisa da formação do respectivo círculo de poder,
pesquisado, aprofundado e preparado pela professora universitária americana Karen
Dawisha.
É amarga
ironia que o círculo de oligarcas do entorno de Ieltsin, diante da decadência
física dessa personalidade, e da consequente (e para eles inquietante) forte
baixa na popularidade, optou por entregar o governo de todas as Rússias (pelo menos aquelas que sobraram à
catástrofe Gorbachev) a um gerarca do KGB,
com um turvo passado como vice-prefeito em São Petersburgo.
Além da
queda dos oligarcas, desapareceram os ares democráticos da agitada presidência
Ieltsin. Mas não é aqui o lugar para refazer essa trajetória. Em resumo, a
democracia, imperfeita mas real, sob Ieltsin, passou a ser roída pela turma do
KGB, com o grupo de Putin à frente.
Hoje, na
Federação Russa se afirma um novo Tzar (embora o chamem de Presidente), com a Duma e o Senado com maiorias
governistas. A antiga liberdade nos órgãos de comunicação agora se acha sob
controle do Kremlin. Há
mortes estranhas, como a do Deputado e ex-Ministro Boris Nemtsov, que
preparava, ao ser executado por um contract-killer,
um comício pró-Ucrânia (no modelo russo que vem abatendo tantos personagens
incômodos, como a jornalista Anna Politkovskaya, que se assinalara
em reportagens corajosas sobre a guerra-colonial da Tchetchênia e foi abatida
no saguão do modesto edifício onde morava), esse formato costuma ser o mesmo, o
que tende a dificultar ainda mais a identificação dos mandantes.
A menção
da Ucrânia vem a propósito. A expedição contra a Criméia e a palhaçada encenada
- tropas descaracterizadas, como se fora necessário divisas russas em seus
uniformes, para desvelar segredo de Polichinelo. Putin terá subestimado a
reação do Ocidente. Não contava com a artilharia das sanções certeiras dos
cupinchas e bancos do círculo do poder putinesco, empregada por Barack
Obama,
e com menos intensidade, por Frau Angela Merkel. Continuam de pé
sanções sobre voos aéreos de e para a Crimeia, e outros obstáculos, como no uso
de cartões de banco. Talvez o nadir da ofensiva de Putin para 'castigar' a Ucrânia, tenha sido no desastre aéreo da
Malaysian Airlines, com a morte de todos os passageiros, abatidos por míssil de
fabricação russa.
No
momento, Putin aparece como virtual aliado do Ocidente na sua luta contra o ISIS. Os seus velhos caças, no entanto,
também se empenham em fortalecer o poder do cliente Bashar al-Assad. É filme que ainda não terminou.
Com o despencar das cotações do
petróleo, as finanças russas entraram em área de turbulência, mas o seu
Presidente continua a exibir a costumeira arrogância. Esse 'castigo' imposto a
Kiev pela derrubada de um presidente pró-Rússia, Viktor Yanukovich pela
revolução popular da Praça Maidan, , ainda não se sabe como vai evoluir, embora a
atitude de Frau Merkel não tem configurado uma aliada de grande valia para a
Ucrânia. Este último país aproveitará ou
não o compasso de espera desejado por Putin na guerra de Kiev contra os
clientes da Rússia (as chamadas repúblicas separatistas fomentadas pelo Kremlin, em outro avatar da punição ao governo ucraniano ).
Depois
de declarar que a Rússia é agora uma potência continental (excluída, portanto,
o cotejo com a URSS superpotência), Obama teve de aceitar a dúbia adesão das
forças de Putin na guerra contra o E.I. Os fins do presidente russo passam por
Damasco e pelo seu submisso aliado (que lhe tem dado presentes comoventes, como
espaço para nova base aeronaval mediterrânea para melhor aproximá-lo das
proverbiais águas quentes do Mediterrâneo).
Será
nesse contexto - toda parceria com Vladimir
Putin é empresa arriscada, atendidos os objetivos do Senhor do Kremlin. Desde que tomou posse, ele vem estendendo o
próprio poder russo na área que é ominosamente denominada de 'o estrangeiro próximo'. A desenvoltura
de Moscou é tal nesse particular que há uma legislação paralela relativa aos
pequenos países que lindam com o colosso russo. Não é uma posição deveras
confortável. Nesse particular, não é demais enfatizar a relevância da Ucrânia. Se Putin, de maneira aberta
ou não, lograr impor a Kiev a mesma sorte da Abkhazia do Sul, Geórgia e
congêneres, não será uma perda apenas para os pobres ucranianos (já penalizados
pela derrubada do presidente pró-Rússia Viktor), mas como muito bem assinalou George Soros, esse avanço do urso russo
será desenvolvimento ominoso e inquietante para a União Européia, e para certos
grandes países (como a Polônia, v.g.) que serão relembrados de forma demasiado
manifesta de o que significa ter uma Rússia em processo de reconstituição como
sua vizinha.
Se a
anexação manu militari da península
da Crimeia recebeu apenas um puxão de orelha das Nações Unidas (eis que a
Assembléia Geral, ao contrário do Conselho de Segurança, só pode emitir recomendações
e nunca resoluções), não é demais relembrar que por decisão da Presidente
Dilma Rousseff o pobre Itamaraty teve de abster-se na Recomendação. Com
isso, ela infringiu a própria constituição, que proíbe ao Brasil guerras de
conquista.
Para
nosso vergonha, prevaleceu por ora o rudimentar e confuso conhecimento
diplomático da Rousseff.
Agora,
o ambicioso Vladimir Putin - que não mais quer aguentar as capitis deminutio de um
país que não é mais super-potência - faz circular estranho e veleitário
documento, no qual o bom Putin desnuda a sua não-pequena ambição, a par do
desejo irrefreável de voltar a circular nos clubes do poder, como era a sua
posição anterior quando foi expulso do G-8. Leiam essa jóia - que não se
assemelha àqueles trabalhos de ouriversaria, os Ovos Fabergé, em que os grão-duques e o próprio Czar dispensavam
bom dinheiro:
"
A Rússia está interessada na construção de uma parceria de pleno direito com os
EUA, baseada em interesses comuns, incluindo os econômicos, tendo em vista a
influência das relações russo-americanas sobre a situação internacional como um
todo."
Já
diziam os nossos maiores que "pretensão e água benta" não enchem
barriga, nem criam situações reais e concretas.
Mais
uma vez Putin mostra - e não só no seu histrionismo - a sua semelhança com Benito
Mussolini, que agia com a teatralidade que é inegável talento do povo
itálico. Mas não se deve, lá como cá, confundir postura e arrogância, com a
concretude do poder.
Nesse
campo, quer se queira ou não, há presenças mais marcantes e mais bem firmadas,
em termos de realidades e potencialidades. Como o Império do Meio, por exemplo.
( Fontes: The New York Review, Putin's
Kleptocracy, de Karen Dawisha, and The Man without a Face, de Masha Gessen ).
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