Michael Ignatieff, professor universitário
e articulista em The New York Review,
escreveu em novembro último - e teve publicado com destaque pela aludida
revista - um seminal artigo sobre 'os
Refugiados e a Nova Guerra'.
Essa 'nova
guerra' a que ele se reporta é o conflito na Síria que se arrasta há cinco
anos, com consideráveis prejuízos e, sobretudo, perdas humanas entre os
infelizes habitantes sob o tirano Bashar al-Assad.
Enquanto o
Ocidente e, em especial, Barack Obama
preferiu na época negar armamentos aos sírios sublevados, Bashar teve os
prognósticos de sobrevida política estendidos por especiais cortesias do Irã
xiita - que não quer perder o apoio alauíta no seu permanente conflito com o
Islã sunita, do também xiita Hezbollah,
que é agente de Teerã. Tampouco, escafedeu-se do quadro o autocrata russo Vladimir
Putin. Escorraçado dos conciliábulos das grandes potências, gospodin Putin continuou com as suas
oportunas transfusões de soro, aeronaves e armamento para o ameaçado ditador de
Damasco. Este último é talvez a última vítima da primavera árabe, só que Sua
Excelência constitui vida política demasiado preciosa para que os seus aliados
ideológicos e de oportunidade permitam que siga a trilha de Kadafi ou Mubarak. Nesse contexto, máximo líder de o que Obama
definiu como poder regional, Putin poderia ser catedrático da matéria "como
fazer o que bem entendo" e tempos mais tarde retornar ao círculo dos
grandes, como se nada houvera. De qualquer forma, na cena internacional, logrou
deixar na sombra a invadida Ucrânia,
enquanto os expertos ainda trabalham
em determinar a atual ideologia (ou postura) do Senhor do Kremlin.
O Inferno de Dante é demasiado ordenado e
os seus demônios bastante cônscios da hierarquia celestial para que cotejar-se possa- não se falará sequer em comparar-se - com
o que o ditador Bashar vem aprontando
contra os infelizes que se acham, seja ao alcance de seus caças, seja nas suas
próprias - se porventura contestadas por outrem - terras.
Esse
cadinho, alimentado pelos combates entre al-Nusra (parente de al-Qaida) e o preposto do Hezbollah, Hassan Nasrallah, os
ataques do chamado Califado do Exército Islâmico, sem esquecer as incursões do
bom Bashar que, por meio de sua aviação (que sobrevive graças a Putin) se diverte em explodir as casas dos infelizes
que ainda não fugiram da Síria (além de recorrer a pestilências e a manter bem
viva a praga da poliomielite - a qual é julgada útil se direcionada contra os
malditos rebeldes).
Ignatieff
começa seu artigo com a seguinte apósita sinalização: "Estrategistas lhe
dirão que é um erro lutar em batalha que seus inimigos desejam que lute. Você
deve impor-lhes a sua estratégia, e não deixar que eles lhe imponham a deles." Assim, na argumentação de Ignatieff, o ISIS quer
convencer o mundo da indiferença do Ocidente para com o sofrimento dos
muçulmanos. Nesses termos, o Ocidente deve demonstrar o oposto. Por outro lado, enquanto o E.I.
deseja arrastar mais fundo a Síria para esse inferno, terminar a conflagração
na Síria deve ser a primeira prioridade da Administração Obama, neste seu
último ano que ora se inicia.
Já está
em andamento o processo de estabelecer cessar-fogo entre o regime Assad e seus
opositores. Nesse sentido os primeiros acordos são assinados entre o Secretário
de Estado John Kerry e o Ministro do Exterior Russo, Sergei Lavrov. A guerra na
Síria ainda consume papel de imprensa e resta determinar se aproveitam a gospodin Putin tais acordos, eis que o
conflito sírio já devorou muitas resmas de papel nas salas do Palais des Nations em Genebra, sem maior
significado prático para o andamento das hostilidades. Chamar Putin de aliado semelha otimismo excessivo.
O presidente russo está sobretudo interessado em servir-se da fraqueza do
aliado e hoje dependente Bashar al-Assad.
Debilidade essa que está sendo posta a uso intensivo pelo bom Putin, como se
depreende dos novos espaços abertos para a marinha e a aeronáutica russa no
território da atribulada Síria.
Como frisa Michael Ignatieff, para que se deslinde a situação favorável ao
ISIS. o objetivo deve ser estabelecer um cessar-fogo entre o
regime Assad e as oposições, para que se possa levar à sua conclusão a luta
contra o E.I., e assim criar condições reais para que os deslocados sírios
possam voltar para casa.
"A
destruição do projeto do ISIS de estabelecer um califado não porá fim ao
niilismo jihadista, mas será um golpe determinante para a erosão do atrativo
ideológico do ISIS."
Dessarte, como assinala Gilles Kepel, especialista francês no
Islã, se o ISIS busca provocar uma guerra civil na França, então o Estado
francês não deve apelar para táticas e medidas extremas que lhe farão perder a
lealdade de seus cidadãos mais vulneráveis e suscetíveis. Essa oportuna
recomendação tática não vale apenas para desmontar a demagogia da líder de
extrema-direita Marine Le Pen.
Respostas truculentas similares - como a preconizada por outro demagogo, este
americano, Donald Trump, líder na
corrida para a nomination do GOP para
Presidente - devem ser evitadas, pois fazem o jogo do ISIS.
Como frisa
Ignatieff - o seu artigo antecede ao histrionismo de Trump - seria estratégia
desastrosa as detenções policiais, sem determinação judicial, deportações em
massa, fechamento de fronteiras, interrogatórios no modelo Bush-CIA. No seu entender, campanha bem-sucedida contra o
extremismo islâmico deveria aprofundar e não minar o compromisso com liberdade,
igualdade e fraternidade entre os cidadãos muçulmanos.
Ignatieff
em seu longo artigo fala da tibieza da reação da administração Obama, mesmo depois da criança de colo síria que
apareceu afogada em praia turca. O presidente americano aumentou a quota de
refugiados sírios para dez mil, e então para quinze mil, sem satisfazer a
ninguém. Na mesma linha de retração, o
governo polonês anunciou que não aceitaria a quota de nove mil refugiados que
lhe fora alocada pela União Européia.
Na
Europa, até o momento, a Chanceler Angela Merkel se tem distinguido da geral
fraqueza e reticência da posição européia. Ao falar do recuo da Administração
Obama, pela mudança nas pesquisas de opinião da postura estadunidense depois do
ataque contra o Bataclã, os Estados
Unidos passou a tratar a crise de refugiados na Europa como se fora
simplesmente questão da responsabilidade da Chanceler alemã.
Esta
debilidade do governo Obama "é um
erro político, assim como um engano moral. Se falha em oferecer um apoio
tangível para a Chanceler Merkel pela sua atitude de acolher os refugiados, os
Estados Unidos enfraquecem Merkel internamente, e apressam a sua queda." E expressamente assinala:"Ao tomar
tão poucos refugiados - cerca de 1854 desde 2012 - enquanto os seus aliados
europeus se debatem diante desse dilúvio humanitário, os Estados Unidos estão
reforçando o sentimento populista da direita européia em um viés
anti-americano, anti-imigratório e populista." Não ajudando a Europa, o
presidente Obama dá ensejo a que líderes europeus orientais, como o Primeiro
Ministro Viktor Orban se deixe levar
para a órbita da Rússia e "disseminar a repugnante ficção de V. Putin de uma
Europa Cristã assediada por hordas muçulmanas."
E as consequências da inação
americana, não param aí. A administração
Obama há de partilhar nas condenações, se crescer o poder de demagogos
anti-americanos como Marine Le Pen. Se
os americanos podem achar que a crise dos refugiados não é questão de sua responsabilidade, os
europeus começam a ter a impressão contrária, assim como os próprios
refugiados.
Nesse
sentido, enfatiza M.Ignatieff "a fuga
humana da Síria é um plebiscito da massa acerca do fracasso da
política americana e do Ocidente para a Oriente Próximo. O povo sírio chegou à conclusão de que a
guerra por-procuração (proxy war) dos
Estados Unidos, da Arábia Saudita e dos Estados do Golfo para derrubar Assad
fracassou; que o território sírio será queimado até o litoral mediterrâneo
antes que o ditador deixe o país; que a paz não virá antes que seus filhos cresçam;
e mesmo que a paz venha não haverá nada a esperá-los em Homs, Kobani e Aleppo.
E
sublinha o articulista: "Os Estados Unidos não podem se dar ao luxo de que
o fosso com a Alemanha cresça ainda mais. Os alemães têm boas razões para
acreditar que enquanto eles suportam as consequências do colapso da Síria, são os Estados Unidos que tem
responsabilidade pelas causas. Até mesmo o ex-Primeiro Ministro inglês Tony Blair admitiu que o surgimento do
ISIS e a desintegração da Síria devem figurar entre as catastróficas
consequências da invasão do Iraque pelos EUA em 2003.
Ignatieff
enfatiza, no final de seu artigo, os desafios com que se deparam a Alemanha, os
Estados Unidos, a China e a Rússia, entre outros. "Merkel se arrisca a cair se ela não puder demonstrar que tem as
fronteiras sob controle".
Assim, "ao invés de estabilizar as sociedades fracassadas (failing societies) a reação dos Estados
Unidos tem sido de tornar mais difícil
que os refugiados possam vir a ser admitidos." Nesse sentido, em vista de
sucessos anteriores, M.Ignatieff sinaliza que a Administração Obama deveria
aceitar o apelo da UNHCR para receber 65 mil refugiados. Se o fluxo de
refugiados é de 4.1 milhões, tal seria visto, segundo o autor, como incentivo
para outros aliados - Austrália, Nova Zelândia, Brasil, Argentina - e outros
países de imigração de fazerem a sua parte.
Na sua
cruzada de obter mais participantes no círculo de países que venham a contribuir para dar condições ao programa
amplo de admissão de refugiados, dispara Ignatieff: " É tempo para que os
EUA venham a expor o blefe da China e da Rússia, também membros permanentes do
Conselho de Segurança, e relembrá-los de
que se desejam ser levados a sério como líderes mundiais, eles devem contribuir
com o que é por eles devido".
Ao
final, Ignatieff esboça um cenário tétrico, dentro da premissa de que os
refugiados colocam tanto um desafio à segurança nacional, quanto crise
humanitária. Assim, se a Europa fecha
suas fronteiras, se os estados na linha de frente não podem mais lidar com a
situação, os Estados Unidos e o Ocidente terão pela frente milhões de apátridas,
que nunca esquecerão que lhes foi denegado o direito de ter direitos.
Ignatieff considera esta a mais alta prioridade da Administração Obama.
O ruído do entorno até o momento pende mais para o silêncio.
De
qualquer forma, o bom senso recomenda prudência e dado o drama enfrentado por
essa gigantesca corrente, parece impor-se uma solução que pelo menos torne
manejável a crise. Fazer-se de
desentendido não vai resolver a questão.
(Fontes: Os Refugiados
& a Nova Guerra, de Michael Ignatieff - The New York Review, nr. 020, Dante,
La Commedia - Inferno )
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