quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

As lágrimas do Presidente


                                                
          Diante da cena do Chefe da Nação americana com os olhos marejados em cerimônia pública em salão da Casa Branca, a própria imprensa estadunidense  descobriu-se desconcertada com o quadro.

         Não há nada mais especificado e ordenado que solenidade em sala aonde se realiza audiência pública do Senhor Presidente. É trabalho a um tempo rotineiro, mas com presenças especialmente convidadas, jornalistas e público selecionado.

         Na grande democracia americana, Barack Hussein Obama é o primeiro afro-americano a ser eleito, e o quadragésimo-quarto na série presidencial. George Washington seria o primeiro  Presidente, empossado em 1789.

            Quando foi eleito por unanimidade, os Estados Unidos da América, eram ainda nação relativamente pequena, eis que reunia as treze colônias formadoras da União Americana. Um longo caminho tem sido percorrido por essa Nação, dentro da norma constitucional até hoje vigente - o que decerto é incomum diante de outros países em que as Cartas magnas podem ter vida curta.  O segredo talvez da Carta de Filadelfia foi o de cingir-se a princípios e normas genéricas, evitando a minudência de outras, que pelas suas próprias características e a facilidade com que são emendadas, tendem a envelhecer depressa.

            A  democracia americana já atravessou momentos difíceis, mas não há registro de quebra da Carta Magna. A maior democracia do Planeta tem enfrentado crises, mas ao contrário das restantes, não há golpes a registrar. Desafios do porte da guerra civil, encontraram em Abraham Lincoln a grande personalidade para conduzi-los nessa sua maior provação. E ela foi vencida, e seu general Robert Edward Lee rendeu-se, dentro da lei.

             Barack Obama, um presidente de dois mandatos (depois de Franklin D. Roosevelt foi emendada a Constituição para que só fosse possível uma única reeleição, sem qualquer exceção) é o primeiro mandatário afro-americano, e também o primeiro a enfrentar o declínio do poder estadunidense, por causa da guerra irresponsável de George W. Bush provocada pelas inexistentes armas de destruição em massa (WMD) tão a gosto da camarilha dos neoconservadores e do vice-presidente Dick Cheney. A única superpotência se dessangraria em bilhões de dólares nessa expedição para derrubar o tirano Saddam Hussein, e para implantar a democracia no Médio Oriente.

            Esse desperdício gigantesco deixou muitas feridas e chagas abertas nos Estados Unidos, notadamente nas  suas cidadezinhas internas, marcadas por esvaziamento econômico, em que os galpões desertos se sucedem  nas Main Street que tanto assinalaram a pátria americana. Cunhou-se o nome de decline (declínio) para tal silenciosa ocorrência, que se marca pela diminuição nas atividades das Main Street interioranas que Norman Rockwell desenhara então com as cores dos bons tempos.

            Obama adentrou a Casa Branca ainda jovem e pagaria o preço da relativa inexperiência política, com derrota nas eleições intermediárias de 2010, que ele próprio designaria como shellacking (tunda). A sua grande legislação - a reforma de Wall-Street,  os fundos para que a economia vencesse a Grande Recessão de 2007/08, com a falência do banco Lehman Brothers, o ACA - a Lei da Assistência Médica para todos - só seria possível implementar no primeiro biênio, quando os democratas dispunham de maioria nas duas Casas do Congresso. Em 2010 se instalou o bloqueio em Washington, eis que nenhuma legislação de peso podia mais ser aprovada, com a Câmara de Representantes (deputados) empolgada pelo Partido Republicano. Aliás, o GOP aprendeu depressa a lei, posto que o guerrymander a que recorreu (servindo-se do novo censo) criaria condições para que se tornasse quase impossível quebrar a maioria republicana na Câmara.

              O GOP seria uma dura prova para Obama, a ponto de o lider no Senado dos republicanos ter proclamado como maior objetivo do partido a não-reeleição do 44° Presidente. A paralísia em Washington e o radicalismo do movimento de extrema direita do Tea Party (uma criação dos irmãos petroleiros Koch, desafetos de Obama) tornaria possível até a queda na cotação do Tesouro americano por uma Agência de Classificação de Risco. Como a manobra tinha as marcas digitais do GOP, acabou prejudicando mais a Agência de Wall Street do que a Nação americana, dada a origem sectária da iniciativa.

               O jovem presidente cresceu no exercício de seu primeiro mandato, através do duro aprendizado e da superação dos eventuais erros. Por isso, o líder da minoria Mitch McConnell teve de engolir o segundo mandato de Barack Obama, e a manutenção da maioria democrata no Senado. As baixarias do Tea Party repercutiram a favor de Obama e dos democratas. Se  a Câmara está hoje ainda escandalosamente blindada contra maioria democrata - Nancy Pelosi desde 2010 deixou de ser a Speaker da Câmara, sucedida pelo católico do Ohio, o republicano John Boehner - este último  acaba de ser derrubado pelos ultras, com a eleição para Speaker de Paul Ryan, quem fora o candidato a vice na chapa de Mitt Romney, em  2012.

               Por outro lado, Obama cresce no respeito de seu eleitorado, assim como de uma parte de eleitores normalmente designados como indecisos. 2016 é na prática o seu último ano na presidência, mas apesar de o Partido Democrata haver perdido a maioria também no Senado, com as últimas eleições intermediárias, o 44° presidente está longe de ser um figure head  (mandatário sem poder).

               É a segunda vez que Barack Obama se vale dos decretos (executive action) para contornar o bloqueio do GOP. Lograra na imigração aprovar um projeto de lei no Senado, com apoio de Senadores republicanos importantes, como John McCain, que fora o candidato a presidente perdedor contra Obama em  2008. Representaria importante avanço social, trazendo para a legalidade um grande número de imigrantes ainda hoje ilegais nos States.  A rigidez da Câmara, cuja composição pelas graças do guerrymander não corresponde ao sentir da Nação americana, barrou a progressão dessa lei, que foi escandalosamente engavetada pelos deputados radicais de direita.

              Nesse contexto, Obama tenta contornar a rigidez republicana com o recurso à executive action (decretos), cuja legalidade pode ser contestada nos tribunais. E é o que está ocorrendo, com a reforma migratória parada pelo reacionarismo de direita do Tea Party.

              Contudo, não há campanha em que o Presidente mais se empenhe do que no intento de criar restrições à irresponsável facilidade com que os indivíduos podem legalmente se armar - e que armas têm disponíveis! Com indubitável acerto e apoio de uma parte da Sociedade Civil, Barack Obama se tem empenhado com grande vigor para restringir a demagógica e nada responsável (em termos de controles) legislação que permite a farra na compra de toda a espécie de armamento.

                Fundado na dúbia legalidade de uma disposição constitucional - o direito de formar milícias armadas, que é um resíduo do período pós-colonial, em que o americano carecia de armas de fogos para proteger a respectiva fazendola ou outra propriedade das incursões dos temíveis peles vermelhas (de que os melancólicos e restantes sobreviventes estão hoje vivendo em reservas bastante isoladas dos grandes centros, sendo muita vez vítimas do alcoolismo e de outras afecções) - o Partido Republicano ( e uma parcela dos Democratas, diga-se a bem da verdade) se opõem com inaudita rigidez e firmeza à inserção de controles na Lei Americana, com vistas a estabelecer limitações de bom senso a esse frenesi armamentista.

                 Nem mesmo o massacre de San Bernardino, na Califórnia, perpetrado por  casal muçulmano contra inocentes membros de uma Clínica de Paternidade Responsável foi bastante para demover os membros do GOP a introduzir qualquer emenda ao direito sagrado do cidadão americano - ou residente nos EUA - de servir-se das armas de alto calibre e letalidade.

                  A negativa dos republicanos (e de uma parte de democratas) de sequer considerar emendas sensatas e moderadas a esse sagrado direito de matar, que é ritualmente defendido sob pretexto de ser um direito constitucional, vai constituindo uma atitude que pelas suas características e pela sua disposição infensa à qualquer mudança, mesmo perante horríveis massacres perpetrados por indivíduos instáveis, como em Connecticut, e em tantos outros estados americanos,  tudo isso agregado leva necessariamente a suspeitar que há boa parcela de irresponsável demagogia, que não trepida em brincar (literalmente) com fogo nesse país, mesmo sob golpes pesados como é a sucessão de massacres por arma de fogo pelos desequilibrados de plantão.

                   Chega a falta de bom senso a tais extremos - eis que as negativas ignoram o peso presente e imediato de uma série de massacres, todos eles caracterizados pelo total desequilíbrio de quem perpetra o ato respectivo, muito embora, em muitos casos, bastaria  rápida consulta aos antecedentes do interessado, para em atendimento ao bem público e à incolumidade que se deveria presumir na civilização americana, que o vendedor negasse, por interesse público, disponibilizar a um indivíduo sob suspeito de grave desequilíbrio, a posse de  instrumento letal que nada constrói e só destrói, com as benesses dos notórios demagogos da direita republicana.

                      As lágrimas de Barack Obama - que pensava nas crianças vítimas da fúria assassina de mais um desequilibrado a quem poderia ter sido negada a posse do instrumento, se se atendessem mínimas condições de bom senso.

                      As lágrimas de Obama são a comprovação de uma luta ingente. A mente sã recusa aceitar esse status quo povoado de crianças em necrotérios. Que Nação é essa que se aferra à influência da National Rifle Association e à sua colheita maldita, como se bastasse para autorizar a demência desses senhores a ritual e arcana reivindicação de uma emenda hoje irremediavelmente proscrita. Se valeu para defender, real ou putativamente, das investidas dos pele-vermelhas o colono americano, é mais do que tempo de introduzirmos o bom senso nas salas dos senhores legisladores.

                      As lágrimas de Obama, à vista da Nação americana, gritam mais forte do que todas as vozes dos portadores de arma.  Chorar perante a morte é o último recurso no macabro silêncio da câmara mortuária.

                       As lágrimas de Obama gritam mais alto que os demagogos do GOP. Pobre do Povo que for incapaz de entender o que aqui está em jogo.

 

( Fontes: Profundamente, de Manuel Bandeira; The New York Times; artigos de George Packer, no New Yorker  )

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