É
bela lenda da História que, com a passagem de ano, se vira a página e
tudo tem o recomeço da Esperança. A coisa fica decerto mais complicada se os
países - como o Irã e a Arábia Saudita - se pautam por outro calendário, e não
estão nem aí para as comemorações do Ocidente do transcurso entre 31 de
dezembro e o 1° do ano, que assinalam a feérica comemoração do Ano Novo, com
suas rituais esperanças. Para quem já viveu - e a serviço - em terra islãmica,
a noite entre 31 e Primeiro de Janeiro é silenciosa e lúgubre, eis que as
comemorações espoucam muito longe e só são captadas por quem tenha tevê com
ligação por satélite com o circuito de Elizabeth Arden.
Enfrentam-se no Médio Oriente dois pesos
pesados do mundo islâmico. Ryadh, capital da Arábia, é a metrópole do sunismo,
o tronco e corrente ortodoxa do
islamismo. Por sua vez, Teerã - e máxime no regime dos ayatollahs - reponta
como o centro da heterodoxia xiita.
A sua coexistência nunca foi fácil, e os
movimentos políticos se regulam pelas pregações dos mullahs (líderes na oração)
nas mesquitas respectivas, jamais esquecendo que o adversário - quando não o
inimigo - se encontra nos perenes embates entre o sunnah, de que Meca é a sede,
e o Xia, de que o regime iraniano é o principal campeão.
Compreende-se, assim, as razões
imediatas e mediatas dessa nova crise em terras
do Islam (que, com certa ironia, significa submissão). O conservadorismo
wahabita da dinastia de Ryadh se choca, amiúde, com a corrente - para eles
herética - do Xia, que se origina de um descendente do Profeta que, afastado da
sucessão, originou a dissidência na religião muçulmana.
Dada a importância da mesquita no
mundo islâmico, as alianças se formam precipuamente sob a direção do credo
respectivo, e por isso as relações políticas são decorrência do fato de seguirem
seja o Sunna, seja o Xia.
A oposição entre Ryadh e Teerã entrou
em fase de ebulição com a prisão e posterior execução de um clérigo xiita,
Sheikh Nimr al-Nimr, que se assinalava por pregações havidas como subversivas
pelo estamento conservador de Ryadh.
Com essa escalada, houve protestos de
rua em Teerã e posterior invasão da missão diplomática da Arábia Saudita.
Diante do desrespeito das normas da Convenção de Viena, que regula as relações
diplomáticas e o caráter exterritorial das missões diplomáticas e consulares,
não há de surpreender que Ryadh tenha rompido relações diplomáticas com Teerã,
como significou o Ministro saudita do Exterior, Adel al-Jubeir.
A crise diplomática no mundo islâmico terá prováveis
consequências sobretudo nas guerras civis na Síria e no Yemen.
Preocupado com os desenvolvimentos
eventuais dessa crise, de sua casa em Idaho, nesse domingo, o Secretário de
Estado John Kerry falou com o Ministro do Exterior do Irã, Mohammed Javad Zarif.
Tal é um desenvolvimento positivo das
longas negociações para o acordo nuclear das principais potências com o Irã, e
as boas relações entre os dois ministros. Embora o conteúdo não tenha sido
revelado, o telefonema é um claro esforço para que os iranianos não agravem
mais a situação através de retaliações.
A delicadeza da questão, no entanto, é
enorme e as potencialidades de piora nesse difícil relacionamento não podem ser
excluídas. Com a intervenção americana no Iraque - um óbvio passo em falso de
Washington, sob a inexperiência de George W. Bush - e o surgimento da Primavera
Árabe, com vários levantes no mundo islâmico, e a consequente oportunidade de
ambas as Partes brincarem com fogo na busca do incremento da própria influência
na região.
Dessarte, as duas potências islâmicas
ficaram em lados opostos em várias conflagrações: no Bahrein, sede de base da frota americana, a Arábia Saudita
enviou tanques para respaldar a dinastia sunita que está no poder em um país de
maioria xiita; na Síria, Teerã tem bancado o ditador alauíta Bashar al-Assad,
enquanto Ryadh apóia os rebeldes sunitas (incluída a al-Nusrah, ligada a
al-Qaida) que desejam derrubá-lo; e no Yemen, vizinho dos Sauditas, o regime de
Ryadh se empenha em guerra aérea contra os rebeldes Houthi, que são xiitas.
Como acentua o despacho do New York
Times, ainda está atravessado na garganta de Teerã o tratamento dado à corrida
em massa (stampede) durante a
peregrinação sagrada do hajj (que o
muçulmano deve cumprir pelo menos uma vez na vida) à kaaba, local santo para todos os islamitas. Em setembro último,
quando da vinda em massa dos peregrinos, desagradou à Teerã o tratamento dado
pelos guardas de Ryadh, com cerca de 2400 peregrinos mortos, dos quais mais de
450 iranianos.
A causa imediata da crise foi a
execução no sábado último do xeque Nimr, que discursara apelando para a
derrubada da família real saudita, e que atuava
como líder espiritual da minoria xiita do Reino. Embora o governo de
Teerã não tenha impedido a invasão da Embaixada, e a sua depredação (a força
policial só interveio mais tarde), e o Presidente do Irã Hassan Rouhani (abaixo
apenas do Aytollah Khamenej) tenha condenado
a execução, mas observou que os ataques contra a missão saudita na
capital e o seu consulado em Mashad atingem a reputação do Irã (em termos do
respeito devido à exterritorialidade diplomática) : "Não permitimos que
grupos de fora-da-lei (rogue) cometam ações ilegais e prejudiquem a santa
reputação da República Islâmica do Teerã.
Provocou consternação nos meios das
Nações Unidas a execução do Xeque Nimr e os outros homens (na verdade uma
execução em massa) "por juízos que levantam sérias preocupações quanto à
natureza das acusações e a objetividade do processo". Por sua vez, a União
Européia citou questões similares quanto à "liberdade de expressão e o
respeito a direitos básicos, tanto civis, quanto políticos."
( Fonte: The New York Times )
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