De
uns anos para cá, minha visão do
carnaval mudou. Na verdade, passam os
anos e teu quadro tem que modificar-se.
É
difícil lembrar do meu primeiro carnaval. Foi,talvez, no Rio Grande. Carnaval
de cidade pequena. Muita gente na rua.
Os carros passavam no corso, muitos foliões nos estribos - naquele tempo os
automóveis tinham estribos, até largos, de onde moças e moços jogavam confete e
serpentina.
Mais
tarde, estou em Porto Alegre. Fomos para onde? Talvez a Rua da Praia. Os
cordões passavam e os blocos também.
Cuidado, meu filho, com o lança-perfume. Tem gente ruim que mira nos
olhos.
Depois, a primeira festinha. Puseram-te uma fantasia: tirolês?
Então,vem
um ano em que vejo de longe o carnaval. Minha mãe está de luto; meu pai partiu.
Nos anos seguintes, no Rio Grande, as brincadeiras voltam. Serpentina,
confete lança-perfume. Na cidade
pequena, passam os corsos, jogam
confete e tens de escapar do lança-perfume.
Depois da viagem ao Rio, as férias - e o carnaval - são para mim na
Paulicéia. O tio-padrinho te leva à avenida Paulista, mas gostas mais das
festinhas dos clubes. Correria nos cordões, confetes, a brincadeira do
lança-perfume.
No ano seguinte, no aperto das
mesinhas, e a corrida nos cordões, revês a namoradinha do ano passado, o
prefeito, os óculos de aros pretos, sentado na mesinha, mas não vejo a filha.
Alguém lhe chega mais perto, cochicha algo ao ouvido, e ele responde com o sorriso
cansado do político.
Os anos vão passando. Me lembro da chegada no Rio, ali na rua do
Passeio, gente bastante mas sem atropelo. Ouço Chiquita bacana lá da Martinica,
se veste com casca de banana nanica... Começavam os tempos em que a marchinha
do ano estourava novinha...
Os blocos passam. Criança ainda, vejo os outros se divertirem.
É muito raro que me fantasiem.
Embora quisesse, não peço, porque sinto minha mãe com pouco dinheiro.
Mais adiante, seja em São Paulo, seja no Rio, participo nos clubes nas
festinhas da tarde. Às vezes, uma que outra namoradinha, que passa fugaz, na
animação dos blocos e dos cordões.
Vêm então os bailes da juventude, sempre no Rio. O transporte é o bonde.
A máscara e o confete substituem a fantasia, que é inatingível.
Os carnavais passam, uma que outra conquista. Vamos ao hotel Central
(hoje sepultado debaixo de edifício-monstro que ocupa um quarteirão). Me lembro de assistir, do terraço do hotel, as
escolas passarem na avenida Rio Branco. Ali, reluzentes, as moças e as baianas quase ao alcance da tua mão...
Naquele tempo também havia o desfile dos carros alegóricos - Fenianos,
Tenentes do Diabo... O espetáculo não
tinha a riqueza de hoje, mas estava mais
à mão...
Como os rios e as ruas em que passavam, as escolas de samba foram
mudando.
O meu próximo encontro com o Carnaval foi numa rua de Paris. Quem estava comigo me disse - Imagina, Mauro,
o carnaval está fervendo, e nós aqui...
Olhei pra ela e ri. Achei graça
porque era verdade. Em Lutécia, vida normal, azáfama diária... Ao invés, no
Rio, aquele fuzuê. Aí, eu que não era muito carnavalesco, senti saudade.
Me lembro de um estágio no Brasil - diplomata, falava como os meus
companheiros. Então o desfile passara para a Presidente Vargas. Estávamos em
Petrópolis e descemos para o Rio, pra ver de uma sala de escritório na
Presidente Vargas o espetáculo.
Não gostamos do que vimos. Houve confusão com a assistência que ficava
no nível da rua. Tempos cinzentos, os meganhas distribuíam cacetadas a rodo. A
festa fica diferente depois da violência.
Não tardou muito, voltamos no mesmo fusquinha para Petrópolis. Carnaval não combina com porrada.
O diplomata pode ser um viajante no tempo. De Paris fomos para
Quito. Da Cidade Luz para a luz das
estrelas.
São Francisco de Quito era ainda mais bucólica naquele tempo. Estávamos
na Seis de Diciembre, logradouro
importante da cidade colonial, e vaquinhas pastavam a erva dos campos diante do
muro de nossa casa.
Lá, tínhamos um pastor alemão puríssimo, que latia forte se protegido
pelas grades, mas que me aprontava senhores vexames com a sua covardia diante
de atrevidos totós...
Em Quito, a permanência
foi curta, mas deu para atravessar outro carnaval, que era uma espécie de
entrudo adaptado. Feito na base das bexigas d'água, nos desaconselhavam rodar
pela cidade. Nada a ver com as ruas de paralelepípedo, mas tudo a ver com as
bexigas e os baldes d'água que deixam encharcados o público e até mesmo os
motoristas.
Ao ver aquilo, pensava
nas brincadeiras do entrudo colonial. Em Quito, não adiantava refugiar-te no
carro, para escapar desses banhos involuntários. Brincalhões, paravam o carro, e punham
jornais molhados nas vidraças do veículo.
Como não se vê nada, quem dirige
tem que sair, para descolar o papel e, assim, tomar seu banho d'água fria, por
vez mal-cheirosa...
Mas a ciranda do tempo não pára. Para
mim, longe do tríduo momesco carioca, se
encontram espécimes estranhos que a gente do lugar pode até chamar de carnaval...
Dizem, por exemplo,
que o carnaval nasceu em Veneza. Mas nada a ver com a nossa festança. Nas
ruelas daquela cidade, estivemos por acaso durante um carnevale. Lá, o que faz o
carnaval é o folião solitário, vestido às vezes de pierrô, que passeia sozinho, o rosto coberto de pó
d'arroz, a postura triste nos olhos maquiados de negro.
Como uma sombra ele
passa por ti, não diz palavra, e a mim parecia a ambulante tristeza dos olhos,
jamais se detendo, como alguém que tem algo a dizer-te, mas já o esqueceu faz
muito.
Outra
particularidade do carnaval - que se vê na Itália, mas também em outros cantos
da Europa - é a dos adultos que vestem as crianças com trajes de festa, rodados, e saem com elas
pela mão, a pateticamente passearem pelas ruelas e becos das vetustas aldeias.
Às vezes eles andam
assim, como se fossem para uma festa a rigor de que esqueceram o endereço. É
um hábito sobretudo da gente do
povo. Vedi i nostri bambini como sono carini...
É desfile que para
nós pode parecer um tanto patético, mas
é decerto resto antigo de costume entranhado, em que as mães se empenham em bem
vestir para uma imaginária festa os seus risonhos e rechonchudos rebentos.
Sempre que ouço dizer que o carnaval é
festa pagã - e há gente, coitada, que pensa assim - eu penso que as pessoas
ouviram mal, e o repete pior ainda.
Para o tempo da quaresma - seja ela real ou
metafísica -careces de muitas razões de alegria para atravessar um tempo de
tristeza. Em toda cultura há o yin e o yang, o avanço e o recuo, e tudo isso é vida. O carnaval - mesmo
visto da minha longínqua janela da senectude - é a alegria, o excesso, o ímpeto
e tudo o mais que com vida e eros tem
a ver. Não estranhes, portanto, que a violência e o grito nele estejam
presentes, se bem que, por vezes, disfarçados na dança, no canto e em outras
demonstrações humanas de afeto.
Aqui, bem do alto,
a visão mais se parece com a de um helicóptero, passando rápida, perdida na pressa
a conexão com a cálida realidade do humano contato, e tudo se vê de passagem,
em caótica mistura de muito grito e pouco sentido, pois tudo se vê à distância,
até que te afastes, o sinuoso silêncio se vá insinuando, e as imagens e as
cores vivas mal se distingam, enquanto a noite vai caindo sédula, súbita e
serpejante. De longe, os rostos desaparecem, enquanto a noite se despenca com
as suas promessas. E até a maldita
quarta-feira, o carnaval se reinventa, tantos
nos lúridos encontros, quanto nas descobertas das ilusões renovadas, que ali
estão na esquina da vida, à disposição dos belos tipos faceiros e das moçoilas
que luzem na formosura dos sorrisos que desvanecem tanto nas imaginárias
promessas, quanto nas súbitas decepções nascidas das sombras.
Bom carnaval a todos!
(
Fontes: A.Toynbee, Montaigne )