quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Das prisões do Brasil

                                  

          O vexame internacional pelas condições dos cárceres no Brasil pode ser que provoque conscientização mais aguda do problema,  tendo presente a afirmação do Ministro da Justiça de Dilma Rousseff, José Eduardo Cardozo, de que preferiria morrer a ser encerrado nas prisões brasileiras. Contudo, aí se indica distanciamento preocupante quanto às verdadeiras responsabilidades da pasta que então ocupava.

         E seria ledo engano pensar em que a grita internacional vá ter algum efeito para eventual revisão da atitude dos ministros  no que concerne a transformação ampla da condição das cadeias e dos presídios no Brasil. Pois a assertiva de Cardozo implica, de certa forma, em esquizofrênico distanciamento da realidade.

         Se o responsável pela Pasta tratou da questão das prisões e de seu abismal estado  presente como se fora algo imutável, tal implica no seu caráter em achar-se a respectiva essência fora da competência da principal autoridade do setor prisional.

          O pressuposto de que vá ocupar-se mais a fundo na questão - o que implicaria em pensar nas perspectivas de aperfeiçoamento corretivo - não é discernível nessa reflexão da maior autoridade quanto ao nosso sistema prisional.

           Cardozo, enquanto Ministro,  sequer cogitou na possibilidade de melhorar o sistema, torná-lo mais humano e capaz de evoluir. Se psicanalisarmos essa suposta atitude, não semelha possível que não se deduza visão ultra-negativa do ministro delle prigioni  (prisões), pois a sua imagem de tais construções não poderia ser mais derrotista.

            Dado o caráter calamitoso desses calabouços, em que os presos são tratados como animais (ou mesmo de forma pior, eis que nas atenções dispensadas às alimárias há - ainda que pelo egoismo do lucro - certos dados que são formalmente obedecidos, como tratamento mais adequado a condicioná-las a ganhar peso e manter a respectiva saúde - além da implícita preservação do espécime), a situação do sistema prisional no Brasil atravessa crise ainda mais grave do que a sofrida por outras áreas.
             Para que se tenha idéia da gravidade da crise, há cadeias despojadas de teto, assim como presídios a que se permite perdurar como locais de concentração de condenados, apesar de não mais disporem de ambiente propriamente humano. Como poderia classificar os presídios de Porto Alegre e de São Luís? Neles a deterioração física de suas alas tem igualmente uma decomposição da natureza humana, pois não se poderia considerar como normais as características que lá prevalecem.

             A autoridade nesses ergástulos está deformada, na medida em que boa parte do poder carcerário é exercido por facções, que têm a força quase total, dado o respectivo condicionamento a uma [1]vis que dentro do microcosmo detém a faculdade de decidir sobre o direito à vida dos que ali estão.

             A degradação moral e física pode expressar-se na alternativa: ou a renúncia da autoridade civil do Estado se reflete no próprio reconhecimento de estritos limites de exercício do poder, com uma espécie de auto-renúncia, fixada por um auto-cerceamento da soberania estatal; ou em casos de desfazimento da autoridade inda maiores, guarda-se apenas a aparência do poder civil, que apenas existe, nesse universo bestializado, como simples faz-de-conta. Esse seria o famoso jeitinho brasileiro no mundo prisional. Sabe-se quem manda, e se procura manter as aparências, de acordo com as corruptas coordenadas que passam como sistema.

            Para que tais antissistemas existam e tornem a exceção regra, o bolo carece de ter os seguintes ingredientes: distanciamento do Estado, como refletido no exemplo do Ministro de Dilma: ele se via como autoridade política, e não tem tempo nem vontade de mudar as regras, e torná-lo lugar de correção e de aprendizado para a mudança efetiva de sistema existencial.

             Como se fora maldição, pairam sobre o estabelecimento prisional, duas autoridades. A primeira é a estatal, e por isso, se autolimita,  a uma postura pro-forma, que é tanto mais fácil de ser mantida, porque objetivamente não cerceia a real autoridade, desempenhada pelo fora-da-lei, cujo aparente respeito à forma enseja a composição entre o poder formal, do Estado, e a força nua dos supostos prisioneiros, cuja aparente renúncia enseja as condições daquela composição.
         
              Trazendo para dentro do presídio, a imitação do mundo lá fora, guardadas as aparências a ficção da paz dentro do ergástulo poderá ser mantida. O poder civil não desconhece, de resto, que quem chancela a ordem serão os representantes da mala vita, na medida em que tal lhes aproveita.
              Este é o status presente no mundo carcerário brasílico. Pela renúncia das autoridades civis (V. lamento de J.E. Cardoso, Ministro de Dilma) são dadas  as condições para que se mantenha a realidade presente, i.e., falta de dotações apropriadas e de política submissa a condições que nada tem a ver com o mundo prisional.
       
              Em outras palavras, atendida a deformação no presente dos presídios e dos cárceres, e o ethos dos dirigentes políticos nacionais, que não parecem ter tempo para se ocuparem de cadeias e presídios, quem sabe não estariam dadas afinal as condições para o surgimento de um novo Cesare Bonesana, o Marquês de Beccaria, que trouxe no século XVIII o Iluminismo para o universo prisional italiano, com a sua obra prima Dos delitos e das penas.  



[1] força.

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