A Rua Farme de Amoedo homenageia médico do século XIX, pesquisador de doenças tropicais. Conhecera esse logradouro de Ipanema
antes de instalar-me em prédio próximo, quando ainda havia aí uma livraria - e
com os devidos descontos à memória - meio alternativa.
Hoje em dia, se esse tipo de negócio não
está daqueles ameaçados pelo avanço do dito "progresso", macacos me
mordam.
Pelo que me lembra essa antiga incursão
em domínios livreiros, nada encontrei que me motivasse para alguma aquisição,
mesmo daquelas que fazemos com uma cláusula opcional, em que o leitor se
promete deixar para depois a leitura, como se a compra fosse uma espécie de
contrato com prazo indeterminado no que tange ao compromisso não-escrito que acompanha
toda aquisição livresca.
Tinha
um grande amigo - objeto de resto de muitas cartas escritas post-mortem[1]
- que além de bibliófilo, dedicou sua vida à leitura e à anotação de muitos, incontáveis
livros. Como muitos dos leitores dessa modesta coluna não ignoram, ele vivia em
Petrópolis, para onde o arrastou o hábito dos livros, e quanto o seu acúmulo
pode por vezes ameaçar seja a respectiva preservação, seja até mesmo a
estrutura de edifícios residenciais.
Faz tempo que nos deixou, e a viúva, a quem
não pude prestar a devida homenagem pela publicação da sua Crítica do Animal Político, que me foi denegada pelo responsável de
editora pública paulista, naquela
vigésima-quinta hora que persegue por vezes, pelo longo braço da
injustiça, ou da sorte madrasta, os estudiosos que ousem pensar que lhes baste
como apresentação a erudição e o silente, abrangente, minudente preito à coruja
de Minerva.
Mas vamos pôr de lado as mesquinharias que
os viajantes da eterna travessia, a todos compulsoriamente aberta, por mais
esforços façam, dependem da cruel Moira, e jamais estarão livres, seja da
janela da Esperança, seja dos rotos véus que recobrem, por vezes, a estranha,
insondável prodigalidades dos deuses.
Com a devida vênia desse bom Amigo
- e o que é a vida senão um álbum por vezes sem nexo, em que vamos enfiando
fotos, papéis e essa criatura, por vezes tímida, por vezes irruente e
intrometida, que nos vai desfolhando, não a margarida, mas as lembranças que o
tempo às vezes leva consigo,e às vezes deixa pelo caminho.
Não creio que o amigo Pedro jamais aí
tenha posto o pé, para não dizer as vistas e as hábeis mãos em folhear tudo o
que impresso haja sido. Esse bom companheiro e colega, personagem de tantas
façanhas livrescas, armado de sua Olivetti, eterno cavaleiro do perdido
paradigma do livro impresso, que devemos a Johann Gutenberg, na sua edição da
Bíblia em latim, em Mogúncia (1450-55), morreu descrente da maldita internet, com o seu espaço digital que
lhe irritava sobremaneira, embora - como assinalei por várias vezes - não fosse
imune a recusar-lhe as eventuais - para ele, enganosas - aberturas.
Pois, nas suas andanças
livrescas, tenho para mim que em tempo algum adentrou a livraria que visitei na
Farme, antes que a rua se integrasse mais tarde no espaço da noite de Ipanema,
com os seus bares e restaurantes. Para quem fale de Farme, a rua se estende por
muitos quarteirões até os lados no sopé do elevador do Pavão-Pavãozinho, mas em termos de comércio e da noite do bairro, o
que conta é o trecho entre a Prudente de Morais e Visconde de Pirajá.
Os monumentos de Ipanema alguém
em boa hora tentara imortalizar em inscrições nas suas calçadas. Devia ser de
outros tempos, pois ignorava a depredação pelo furto da memória citadina. Em uma crônica, se não me engano a Memória Perdida de Ipanema, ousei
relembrar ao passado prefeito Eduardo Paes a eventualidade de restaurá-las
através do menos brilhante cimento (ao invés do bronze que excitara a torpe
cobiça) da parte de um métodico ladrão que arrancou as muitas e muitas
inscrições, que incluíam gente como Vinicius de Moraes, Tom Jobim e Niemeyer, cinemas como o Ipanema e o
Astória, sorveterias como a do Moraes, e outras tantas coisas que a mentalidade
filistina e a comercial ganância arrancariam do bairro.
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